- Folha de S. Paulo /Ilustríssima
Enquanto isso, as reações civilizadas têm sido tíbias e tardias
Já quase ao fim de “À Espera dos Bárbaros”, o personagem de J. M. Coetzee cogita “um relato de como as pessoas deste posto avançado passaram seus últimos anos apaziguando suas almas à espera dos bárbaros.”
A história deste autoapaziguamento pode ser contada no mundo imaginado do romance, mas está também no dia a dia do país real em que vivemos.
Ao longo da última década, deterioraram-se todos os nossos padrões de civilidade. Evidências apareceram nas redes sociais e nas ruas, em sopapos no Legislativo, em rinhas no Judiciário, antes de chegar ao ponto agudo das bravatas do Executivo Federal. O que começou em grito chegou a sangue, que, a despeito do fosso que os separa, tocou a Marielle e a Adriano, a Bolsonaro e a Cid Gomes.
A barbárie está por toda parte. Não se esconde, ao contrário. Os bárbaros eram eufêmicos antigamente, quando um ministro militar mandava às favas seus poucos escrúpulos. Agora, outro acaba seus rompantes sem aveludamentos, num sonoro “Foda-se”.
Quem são os bárbaros? Ao longo de nossa história, a elite política sempre se viu como civilizada e civilizadora. Bárbaros eram os outros: os nativos, os africanos, os pobres.
No Brasil, elites política e intelectual se constituíram entrelaçadas, com os políticos escrevendo ensaios, colunas de jornal, poemas, e os letrados ocupando ou postulando postos políticos. Esta indistinção original criou uma ilusão de ótica, a de que a elite brasileira, ou ao menos sua nata, tenha pendor civilizatório.
A crença sobreviveu mesmo desaparecida a situação em que se enraizava, quando da autonomização da carreira universitária e da profissionalização dos partidos políticos.
Crença ilusória porque nunca existiu uma parte sem a outra. Desde o Império, os ilustrados tiveram o nariz empinado e os pés no atoleiro. Elegiam-se graças a chefes paroquiais escassos em latim, mas com bolsas fartas e métodos sanguinários.
A parte chique da elite nacional acalenta desde então o sonho de domar sua parte menos nobre. Mas o barco iluminista redescobre sua âncora a cada tentativa de zarpar. Os processos políticos de abolição da escravidão, em 1888, e de promulgação da Constituição “cidadã’, um século depois, são emblemáticos das resistências da elite nacional a direitos universais e práticas civilizadas.
A Constituição de 1988 é um feito civilizatório, com seus amparos a estratos sociais antes descobertos —dotações específicas para saúde e educação; proteção para meio ambiente, grupos indígenas e minorias sociais.
Mas a Carta também abriu campo para membros iluminados da elite social se arrogarem funções de comando do processo civilizador. O ativismo judiciário, açulado por imprensa, partidos, intelectuais, ganhou este sentido. As consequências da hipertrofia estão à vista.
De outro lado, muitas leis civilizatórias nunca desceram goela abaixo de parte da elite política que habita os rincões. Proteção ao trabalho, ao meio ambiente, de grupos indígenas, de minorias sexuais ou da maioria étnica contaram com sua animosidade. Idem para as políticas públicas democratizantes, como o SUS e o Bolsa Família.
Muitos iluminados acreditaram que aprofundavam o processo civilizatório ao apoiar ações como o impeachment de Dilma. Supunham entrar numa operação controlada, capazes de dirigir os aliados xucros. Foi o contrário.
Depois da eleição do atual mandatário, os mais otimistas ainda se apegaram à ideia de contar com parceiros nos ministérios. Mas, passado um ano, é ingenuidade crer que princípios civilizatórios orientem qualquer parte do governo ou que ele se divida em uma ala luminosa e outra escura.
O governo é inteiriço ao tachar direitos individuais, serviços e políticas públicas como formas de “parasitismo”. Orienta-se pelo liberalismo do ministro da Economia, que veda às empregadas domésticas até a liberdade de sonhar.
Suas piadas misóginas (como sobre a primeira-dama francesa) estão em sintonia moral com seu chefe. Além do ultraje particular à jornalista Patrícia Campos Mello, o presidente agrediu toda a imprensa, com banana gestual reiterada.
Ante tudo isso, soa caçoada a declaração presidencial de que a democracia no país nunca esteve tão forte. Bolsonaro não está nem aí para a democracia. Nunca esteve.
As reações civilizadas ao avanço da barbárie têm sido tíbias e tardias. Como reflete o personagem de Coetzee: “Alguma coisa tem me olhado direto na cara, e ainda não vejo o que é.” Basta abrir os olhos para ver que são os bárbaros. E já chegaram.
*Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
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