- O Globo
Bolsonaro deixou de ser apenas um sujeito mal-intencionado, passou a ser uma pessoa perigosa
Verdade. Eu ia escrever sobre o amor. Como as pessoas se conhecem, se apaixonam e se casam usando as redes sociais e os sites de relacionamento. Como muitos também se separam pelas redes. Tentaria mostrar como esses casais exaltam em cores e sorrisos as suas histórias de amor eterno. E como outros, diante da inevitável separação, apagam os seus passos em conjunto, eliminam qualquer evidência de um que um dia estiveram casados, deletando para sempre fotos, vídeos e declarações de amor postados no Insta e no Face. Seria uma coluna mais leve, mas ainda assim de tremendo interesse para a sociedade. Mas aí veio a última do Bolsonaro.
No auge de uma pandemia que se espalha de maneira geométrica e causa pânico em todo o mundo, o presidente deu uma entrevista afirmando que "o coronavírus não é isso tudo que a grande mídia propaga”. Outra vez culpou a imprensa por exagerar a ponto de causar uma crise global que culminou com a queda do preço do petróleo. Esta deve ter sido, se não a maior, uma das maiores sandices já ditas por um presidente da República em todos os tempos. Bolsonaro deixou de ser apenas um sujeito mal-intencionado, e passou a ser uma pessoa perigosa.
Se um brasileiro seguir a orientação do seu líder e passar a menosprezar o coronavírus como se não fosse isso tudo que estão falando, ele certamente deixará de atender às recomendações feitas por médicos e sanitaristas, transformando-se num potencial candidato a ser infectado e virar um forte transmissor da doença. O presidente disse, em outras palavras, que a pandemia é uma bobagem. Vejam o tamanho da irresponsabilidade de quem governa o Brasil. Não dava mesmo para falar de amor numa hora dessa.
Nos Estados Unidos, aonde cheguei na segunda-feira, não há outro assunto. Nem a Super Tuesday vencida por Joe Biden conseguiu desmobilizar o país em torno do coronavírus. Aliás, mesmo as campanhas dos dois candidatos democratas foram reduzidas para se evitar aglomerações no dia do pleito. Em Nova York, a Universidade Columbia suspendeu suas aulas, assim como Harvard, em Boston. Hospitais de NYC já estão racionando máscaras para pacientes, médicos e enfermeiros. Falta álcool gel nas farmácias da cidade. Alguém já imaginou que algum produto um dia faltaria em Nova York?
Uma pequena cidade a 34 quilômetros de Times Square, New Rochelle, foi colocada em quarentena. Um raio de uma milha foi estabelecido ao redor da cidade, de onde ninguém passa. Ninguém entra, ninguém sai. A Itália se isolou do mundo. Mais de 110 países já registraram a presença do vírus. E o nosso presidente diz que “não é isso tudo que a grande mídia propaga”. O que Bolsonaro fez foi apenas repetir da sua maneira grosseira o que o seu ídolo Donald Trump havia escrito no Twitter na segunda-feira. Trump disse que a “Imprensa Fake News e o Partido Democrata estão inflamando (aumentando) a situação do coronavírus”.
O que líderes serenos e comprometidos com seus países devem fazer é manter a calma da população, colocar os recursos necessários para controlar ou minimizar o problema, estimular o debate sobre a questão, sugerir medidas de segurança. Nunca dizer que o problema não existe ou é menor do que as autoridades sanitárias afirmam. Ontem, Trump mudou de tom, suspendendo por 30 dias viagens da Europa para os EUA. E ontem ainda, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, anunciou oficialmente que o coronavírus ganhara de fato status de pandemia.
Enquanto Bolsonaro produz esses absurdos perigosos e Trump vai e vem, outras pessoas trabalham em favor dos seus semelhantes, distribuem sorrisos, calor humano e abraços, mesmo que abraços de mentirinha, já que a primeira recomendação para conter o avanço do vírus é evitar contatos físicos. Ontem, uma jovem universitária distribuía gratuitamente na Washington Square, em NYC, broches com a inscrição “Air Hugger”. Numa tradução livre, significaria que o portador do broche está oferecendo a todos um abraço simbólico, ele seria um “abraçador de ar”.
Era um gesto de carinho. Um gesto que, de certa forma, faz justiça a este artigo que originalmente deveria tratar do amor.
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