- Folha de S. Paulo
Com a crise total não há espaço para a política adversarial
Já passamos por uma calamidade de proporções ciclópicas. O testemunho ocular de um parlamentar durante a gripe espanhola (1918), na capital da República, aponta para a magnitude da tragédia: "A gripe desembarcara de Dakar uma semana antes, e apoderara-se logo da cidade, espalhando sem dificuldade sobre ela sua dominação assombradora. Quanta gente que não devia morrer tão cedo, moços fortes, moças bonitas quantos não tinham já partido".
"Cada dia, cada hora chegava uma notícia... noivas com enxovais prontos, esperando o dia do casamento, enroladas as pressas no vestido de noivado e atiradas num montão de outros cadáveres que aguardavam cova no cemitério", (Gilberto Amado, em suas memórias).
Mas são muitas as diferenças entre a gripe espanhola e a atual crise do coronavírus. Trato aqui apenas de uma delas: dada a intervenção massiva do Estado no setor e seu impacto econômico avassalador, a crise atual é crise total.
A política de atenção à saúde tal qual a conhecemos hoje em quase todas as democracias (os EUA é a grande exceção) é recente e só se desenvolveu no pós-Guerra. No Brasil, em 1918, nem sequer tínhamos algo chamado Ministério da Saúde, mas apenas campanhas sanitárias esporádicas, com forte participação internacional (Fundação Rockfeller). Em 1930, foi criado um Ministério da Educação e Saúde Pública, mas a saúde só ganha um ministério autônomo em 1953.
A atenção à saúde pública curativa e não emergencial só se desenvolveu de forma incipiente para os associados dos institutos de aposentadoria e pensões (Iapi, IAPC etc.) até a fusão dos institutos no INPS, em 1966. Seus departamentos de saúde foram amalgamados no Inamps, cujos hospitais continuaram fechados e inacessíveis a não membros até 1985, quando o Suds —rebatizado SUS, em 1990— foi criado. Foi nesse período que se desenvolveu o modelo de planos de saúde privados, produzindo a segmentação público/privada no setor.
Hoje a área da saúde corresponde ao segundo maior orçamento e ao segundo maior contingente de força de trabalho setorial federal; além de ser a mais complexa, por que tem uma dimensão de provisão de serviços (inexistente na Previdência Social).
A escala dramática da crise e o cataclismo econômico convertem-na em crise do Estado, crise total. Daí decorrem consequências políticas cruciais. A mais importante é que o ambiente institucional muda radicalmente, o que tem implicações decisivas para lideranças populistas e iliberais. Neste novo ambiente, não há espaço para a política adversarial e "campanhas perpétuas": aumenta brutalmente a demanda por lideranças que tenham capital moral e que promovam coordenação e consenso.
*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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