segunda-feira, 23 de março de 2020

O que a mídia pensa – Editoriais

Somos todos responsáveis – Editorial | O Globo

População depende do comprometimento de cada um com posturas conhecidas que levam à contenção da epidemia

A epidemia mundial de coronavírus lembra pestes na Idade Média, pandemias também de doenças respiratórias como a Gripe Espanhola, em 1917/18, e a Sars, mais recente, há 17 anos. Mas nunca houve nada igual, pela velocidade com que o vírus se espalha pelo planeta, representando grave perigo para as populações. Identificado na cidade chinesa de Wuhan, no fim do ano passado, e depois de se espalhar pela Ásia, contaminar a Europa e entrar nas Américas, o coronavírus passou a ser uma das maiores ameaças na História à ordem econômica, social e política. Mesmo que fosse possível sociedades não serem contaminadas, elas seriam atingidas, porque é impossível saírem ilesas de uma recessão mundial como a que está em gestação avançada.

O Brasil, um dos dez maiores PIBs do mundo, sofrerá danos severos. Pelo tamanho da crise que se aproxima e devido às características da epidemia, a questão não é só do governo, do Congresso, dos poderes republicanos. É de responsabilidade de todos. A superação dos grandes e múltiplos problemas que aí estão — na saúde, na economia, no campo social e, por consequência, na política —, e que se agravarão, precisará de uma mobilização e engajamento da sociedade talvez nunca vistos. Não se trata de uma causa política, ideológica. Mas de sobrevivência, em sentido amplo.

A responsabilidade pelo sucesso ou fracasso será de todos. Na entrevista coletiva do Ministério da Saúde concedida no sábado, o secretário-executivo da pasta, João Gabbardo, pediu à população para não esperar o poder público para tomar atitudes. Disse, acertadamente, que como a imprensa há dias dá total prioridade ao noticiário do coronavírus, com repetidas informações práticas de como todos precisam se comportar, cada um deve saber a sua parte. É essencial se recolher, para evitar a retransmissão de um vírus veloz.

Neste sentido, foi frustrante, deseducativo e despido de qualquer espírito de cidadania, o carioca encher praias e bares no penúltimo fim de semana. Bem como idosos, grupo vulnerável ao vírus, continuarem no calçadão de Copacabana e praças, correndo risco de contrair a doença e ainda se transformar em uma plataforma ambulante de contaminação. É descabido o prefeito Crivella pensar em pedir ao Exército soldados para mandar pessoas de idade avançada para casa, por ser um desatino converter militares em guardas de costume. Mas inconsequência de idosos é inaceitável.

Pode ser que a falta de sol no fim de semana tenha ajudado a esvaziar as ruas. A melhor hipótese é que esteja afinal aumentando a consciência da seriedade do momento, à medida que o número de contaminados e mortos cresce. É necessário entender que bastam alguns poucos irresponsáveis para muitos padecerem.

Os empresários são um elo estratégico na crise. São eles que empregam a maior parte da força de trabalho e que, se nada for feito, serão obrigados a demitir em massa, porque a recessão fará com que suas receitas desabem. Ou desapareçam. A previsão para a economia americana é que a taxa de desemprego, na faixa de 4%, das mais baixas de que se tem registro, dispare para 20%. No Brasil, o índice se encontrava em janeiro em 11,2%. Estava em queda, vai subir outra vez, não se sabe até onde.

Foi decretado pelo Congresso estado de calamidade pública, a pedido do Planalto, para o governo não obedecer à meta fiscal. Não conseguiria mesmo. Com as receitas em queda vertiginosa, as empresas precisam de dinheiro para pagar a folha de salários. Os bancos públicos serão mobilizados. É possível que também possam atrasar impostos.

Acionistas e executivos das empresas precisam também entender que são parte do esforço coletivo de reconstrução para o bem de todos, pessoas físicas e jurídicas. Empresas já recebem mais de R$ 300 bilhões anuais em incentivos, ou 4,5% do PIB, dinheiro do contribuinte. Para sobreviverem, como a sociedade deseja e precisa, alguns novos bilhões do Erário terão de ser repassados para o seu caixa. Será preciso muita seriedade de gestores e acionistas na administração desses recursos. A prioridade tem de ser a manutenção do emprego. O restabelecimento de margens de lucro pode ficar para depois. A questão social se torna grave junto com a econômica, só que ela explode rapidamente nas ruas.

O chamamento à responsabilidade alcança os políticos. Muitos demonstram a mesma inconsciência de tantos diante do maremoto que se aproxima do país. Ano de eleições municipais, aspirantes a 2022 se agitam. Não causariam tantos danos se não fossem o presidente da República e os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro, os dois maiores estados.

É louvável que João Doria e Wilson Witzel estejam ativos diante da crise e procurem prestar contas diariamente por meio da imprensa. Mas enquanto Bolsonaro e os dois governadores fazem guerra de decretos e medidas provisórias para saber quem terá a primazia de fechar ou abrir portos, aeroportos e estradas — a União é que deve tratar do assunto, por óbvio —, a situação exige a cooperação entre todas as esferas do poder.

Disso depende um país. Antes da crise, entre trabalhadores sem carteira de trabalho, trabalhadores domésticos e autônomos eram 46,8 milhões. Há ainda milhões que estão no mercado formal e que podem perder o emprego com a crise e aumentar a população deste Brasil pobre, a depender do entendimento entre os brasileiros.

Vírus eleitoral – Editorial | Folha de S. Paulo

Governadores se saem melhor do que Bolsonaro na crise do vírus, diz Datafolha

Em política, perdoe-se o lugar-comum, toda crise é uma oportunidade. Não haveria de ser diferente com essa que talvez seja a maior emergência sanitária que o país enfrentou na sua história recente, a pandemia do coronavírus.

Desde que o regime de urgência instalou-se entre autoridades de saúde do país, foi possível discernir com clareza o grau de comprometimento de diversas autoridades.

O chefe de Estado tratou o tema com ligeireza. "Histeria" e "gripezinha" foram expressões usadas por Jair Bolsonaro acerca da Covid-19.

Após a irresponsável participação em atos contra outros Poderes, houve uma inflexão atabalhoada, mas ao menos o presidente começou a reconhecer a emergência.

Já o ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde), conduz um trabalho visto como técnico --a controversa proposta de adiar as eleições municipais foi feita após a pesquisa. E os governadores assumiram o papel de gestores de crise.

Alguns podem ter sido draconianos antes do tempo, como Ibaneis Rocha (MDB-DF), mas ninguém quis ser visto como omisso. O exemplo mais evidente está em São Paulo, onde João Doria (PSDB) tornou-se face pública da comunicação dos esforços no estado.

O resultado é aferível na pesquisa Datafolha publicada nesta segunda. Ali, Bolsonaro tem 35% de aprovação a seu trabalho na crise --ante reprovação quase idêntica, de 33%. Em comparação, governadores (cada entrevistado avaliou o de seu estado) têm 54% de menções positivas, e a pasta da Saúde, 55%.

Clivagens da eleição de 2018 ainda são visíveis, como o Nordeste liderando a rejeição ao Planalto --cujo desempenho, na região, é considerado péssimo ou ruim por 41%.

Se as presepadas do presidente são amplamente reprovadas (84% entendem que ele agiu mal ao confraternizar-se com manifestantes), nem tudo é má notícia para ele.

Ressalvando o fato de que a metodologia da atual pesquisa, realizada por telefone, a torna incomparável com os usuais levantamentos presenciais, os 35% de aprovação são compatíveis com o apoio médio que Bolsonaro vinha registrando. Indica-se assim preservação desse contingente do eleitorado.

Há pontos de dissonância, contudo. Num segmento em que o presidente sempre teve maior apoio, o daqueles mais ricos, a reprovação a sua gestão de crise é de 51%.

Novamente, o dado demanda reavaliação mais aprofundada, mas sugere que o dano à imagem presidencial evidenciado pelos panelaços em áreas que votaram em Bolsonaro parece estar se enraizando.

Na via oposta, governadores que miram o Planalto no pleito de 2022, como Doria ou Wilson Witzel (PSC-RJ), terão de encontrar um ponto de equilíbrio se não quiserem ver suas ações contra a pandemia confundidas com peças de campanha.

Medo financeiro – Editorial | Folha de S. Paulo

Bancos centrais agem contra impactos da pandemia; governos precisarão gastar

A consternação geral diante do avanço da Covid-19 tirou do centro das atenções comuns a situação crítica dos mercados financeiros da ainda principal economia do planeta, os Estados Unidos.
Mesmo quando está sob risco a sobrevivência de milhões de pessoas, o assunto não é lateral. Um aprofundamento do colapso das finanças daria impulso enorme a uma recessão global que já se anuncia.

Na semana que passou, o mercado de financiamentos de empresas, incluindo bancos, deu sinais de que poderia travar. Escasseava de modo crítico a oferta de crédito.

Nesse mercado, companhias tomam empréstimos de curto prazo para tocar suas operações, por meio de algo similar a notas promissórias. Entretanto poucos aceitavam comprar tais títulos. O mesmo se passava com os papéis imobiliários, por meio dos quais se busca dinheiro para financiar a compra de residências e terrenos.

Nessa praça, que movimenta trilhões por dia, empresas financeiras tomam empréstimos dando como garantia os títulos de dívida mais seguros e desejados do mundo, os do governo americano. Faltava, porém, quem quisesse ser contraparte dessas operações.

Quando muitos querem vender e poucos querem comprar, trate-se de mercadorias ou ativos financeiros, o preço cai. No segundo caso, isso quer dizer exatamente que a taxa de juros das operações sobe.

No mercado americano venderam-se em excesso até títulos de longo prazo do governo, o que não costuma ocorrer ao mesmo tempo em que se vendem ações em massa. Os investidores queriam apenas dinheiro ou títulos públicos de curtíssimo prazo e baixo risco.

Trata-se de medo. Não se sabe a profundidade da recessão por vir. O dólar escasseou no mundo inteiro, tanto que o banco central dos EUA, o Federal Reserve, passou a emprestar sua moeda a taxa quase zero para seus pares pelo planeta.

A crise foi atenuada quando o Fed também ofereceu crédito a empresas financeiras. São providências extraordinárias, vistas apenas na grande crise que explodiu em 2008 e afetou todo o mundo.

A situação ainda é grave e pode se deteriorar conforme a estimativa de parada da economia global. Os bancos centrais sinalizaram que vão agir contra os piores efeitos da turbulência. Mas os governos também precisarão gastar para atenuar o colapso do setor real.

A vida, o emprego e o estômago – Editorial | O Estado de S. Paulo

Salvar vidas, manter empregos e ajudar os mais pobres a atravessar a crise devem ser as maiores preocupações, neste momento, e o governo decidiu enfim reconhecê-las, apesar da resistência inicial do presidente Jair Bolsonaro. A proteção de empregos e a distribuição de dinheiro aos mais necessitados – como os mais de 40 milhões de informais – são algumas das medidas mais importantes anunciadas nos últimos dias pela equipe econômica. Complementam as normas de segurança indicadas pelas autoridades sanitárias e encampadas por prefeitos e governadores. É preciso limitar a circulação e a aglomeração de pessoas para frear o contágio e defender a vida, mas pode-se ir além disso.

O enorme custo econômico das medidas preventivas é preferível aos efeitos da contaminação sem controle. Qualquer pessoa sensata e responsável pode entender e admitir esse raciocínio. Autoridades municipais e estaduais têm ido na direção certa, procurando limitar a difusão do coronavírus. Agora, as medidas propostas ou decididas pelo Executivo federal podem atenuar, no aspecto econômico, os efeitos colaterais da prevenção sanitária. A política de juros do Banco Central (BC), com nova redução pelo Copom, tem o mesmo objetivo de dar algum impulso aos negócios.

Para ações de maior alcance a equipe econômica abandonou, por algum tempo, severos compromissos fiscais. Muito dificilmente, mesmo sem as novas medidas, o déficit primário ficaria no limite de R$ 124,1 bilhões neste ano. A pandemia poderá impor uma perda de arrecadação de uns R$ 60 bilhões, informou o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, numa entrevista à Rádio CBN.

Há duas semanas, segundo ele, as perdas de receita causadas pelo coronavírus eram estimadas em R$ 30 bilhões. Com os dados atuais, pode-se estimar para o fim do ano um déficit primário (sem juros) de uns R$ 200 bilhões nas contas do governo central.

Na base do novo quadro fiscal há expectativas muito baixas de desempenho econômico. No mercado, as novas projeções têm ficado entre números ligeiramente negativos (contração próxima de 0,5%) e ligeiramente positivos, em geral inferiores a 1%. Hoje no Ministério da Economia o crescimento agora esperado fica entre zero e 0,5%, informou o secretário.

Para lançar as medidas de emergência e romper os limites orçamentários o governo teve de pedir ao Congresso uma declaração de estado de calamidade. A solicitação foi recebida com boa vontade, assim como algumas propostas dependentes de aprovação legislativa. Entre estas se inclui a autorização para redução de jornadas e de salários, apresentada como forma de preservação de empregos.

De modo geral, parlamentares de todo o espectro político reagiram favoravelmente às novas iniciativas. O pacote inclui também facilidades fiscais, como diferimento de impostos e contribuições. Quando a maior parte das novas medidas foi apresentada, na quarta-feira, já se esperavam também ações de socorro às empresas aéreas.

O novo corte dos juros básicos, na quarta-feira, foi um complemento político sem surpresa. Desde muito antes da pandemia o Banco Central vem trabalhando para estimular a atividade.

As apostas no mercado oscilavam entre 0,25 e 1 ponto de porcentagem. A decisão ficou no meio, em 0,5 ponto, e a taxa básica, a Selic, passou a 3,75%, o menor nível de sua história. Mas o Copom, ainda prudente, indicou a disposição de manter esse patamar, se nenhuma grande surpresa ocorrer.

Facilidades para renegociação de empréstimos já haviam sido apresentadas pelo BC. Além disso, o Executivo orientou os bancos federais a facilitar a concessão de capital de giro, para diminuir o aperto das empresas. Nos bancos privados a renegociação depende dos cálculos e da boa vontade dos banqueiros. Na área pública trata-se de executar uma política. Financiamento e refinanciamento podem tornar-se cruciais em pouco tempo. Sem isso, a reconstrução será muito mais difícil, porque a devastação terá sido muito maior. Prudência, neste caso, é assumir o risco de socorrer as empresas, grandes ou minúsculas.


O impacto da crise sobre o trabalho

A OIT estima que a pandemia pode deixar mais de 24 milhões de desempregados

Enquanto a crise sanitária no Ocidente entra no seu apogeu e começa a ser contida na Ásia, a crise econômica global está apenas começando. Tudo indica que o PIB mundial encolherá no primeiro semestre e na melhor das hipóteses ficará estagnado no segundo – o pior desempenho desde a crise financeira de 2007-2009 –, mas pode reacelerar em 2021, à medida que as cadeias de produção voltarem à ativa em busca do tempo perdido. Por outro lado, há o risco de que a contenção do vírus se prolongue mais do que o esperado ou sofra retrocessos insuspeitados. Em meio à incerteza, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) emitiu seu primeiro diagnóstico: Covid-19 e o Mundo do Trabalho: Impactos e Respostas.

Partindo dos atuais 188 milhões de desempregados, as estimativas sugerem um crescimento na taxa de desemprego global entre 5,3 milhões, no melhor cenário, e 24,7 milhões, no pior. A título de comparação, a crise financeira aumentou o desemprego em 22 milhões.

O impacto afeta tanto a quantidade como a qualidade dos empregos na indústria e nos serviços. Na China, por exemplo, o valor total agregado da indústria declinou 13,5% nos dois primeiros meses de 2020. O Conselho Mundial do Turismo e Comércio prevê um declínio de até 25% neste ano. Segundo a OIT, as perdas na renda dos trabalhadores podem variar de US$ 860 bilhões a US$ 3,440 trilhões.

Além disso, o impacto atinge desproporcionalmente os segmentos da população. A proporção de trabalhadores pobres deve crescer expressivamente. Jovens e velhos também sofrerão mais perdas de renda e ofertas. Alguns setores particularmente afetados pela pandemia, como serviços, saúde e escolas, têm um contingente massivo de mulheres – muitas delas responsáveis pela renda da família. Mais do que tudo, o choque atingirá os trabalhadores por conta própria, tanto mais na economia gig, um dos setores que mais cresceram nos últimos anos.

O primeiro pilar nas reações governamentais deve ser a proteção aos trabalhadores e aos locais de trabalho. Os governos podem auxiliar com condições logísticas para a implementação do teletrabalho e turnos escalonados. As associações de empresas japonesas submeteram a seus associados um questionário sobre medidas no local de trabalho e criaram atendimento telefônico para ajudar na adaptação. Irlanda, Cingapura e Coreia do Sul disponibilizaram licenças remuneradas por doença para trabalhadores por conta própria.

O segundo pilar é o estímulo à economia e à demanda de trabalho. Bancos centrais na Austrália, Canadá, Reino Unido e EUA cortaram as taxas de juros. A Itália introduziu isenções fiscais para contribuições de seguridade social e prorrogou os prazos para quitação de dívidas e financiamentos. O suporte especial a setores específicos precisa ser cuidadosamente dimensionado. Na Coreia do Sul o turismo e outros setores mais impactados receberam maiores subsídios e períodos mais longos de apoio.

O terceiro e último pilar é o apoio ao emprego e à renda. Na China o governo decretou que contratos de trabalhadores imigrantes não serão encerrados em razão de doença ou medidas sanitárias. Benefícios e outras formas de transferência de renda para os desempregados foram expandidos em diversos países, assim como aportes financeiros e isenções fiscais para os empregadores.

A atual crise tem características singulares, mas a experiência de crises financeiras e epidêmicas passadas mostra que a comunicação transparente e tempestiva reduz a incerteza e estimula a confiança. A última crise financeira provou que uma atitude do tipo “custe o que custar” compensa os sacrifícios fiscais dos governos.

Independentemente das circunstâncias nacionais, a OIT insiste num princípio fundamental: “O diálogo social tripartite entre governos, empregados e empregadores é a chave para desenvolver e implementar soluções sustentáveis”. Em escala global, é preciso resistir às tentações nacionalistas. A pandemia, por definição, impacta toda a cadeia de trabalho global. O multilateralismo será mais imprescindível do que nunca.

A hora da responsabilidade – Editorial | O Estado de S. Paulo

Diante do estado de calamidade pública provocado pela pandemia da covid-19, as reformas estruturais de ajuste fiscal ficaram em segundo plano. Mas isso não significa que não se deva atacar as causas crônicas da irresponsabilidade fiscal, até para aplicar mecanismos de controle - como os previstos na PEC Emergencial ainda não aprovada pelo Congresso - que deem flexibilidade para que o poder público faça gastos urgentes para conter as hemorragias sanitárias e econômicas.

Em auditoria do último quadrimestre de 2019, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo constatou que uma em cada quatro prefeituras gasta excessivamente com pessoal. São municípios que infringiram ou estão a ponto de infringir a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que limita os gastos com pessoal a 54% da receita corrente.

Como se o diagnóstico já não fosse preocupante, a realidade é com toda probabilidade mais grave. Das 644 prefeituras fiscalizadas, 219 (34%) descumpriram o prazo para apresentar os dados completos. Ao todo, 195 prefeituras, 32 Câmaras Municipais e 56 entidades da Administração Indireta não encaminharam as informações exigidas. Isso significa que, além das sanções previstas na LRF, estas administrações devem ser penalizadas por inobservância do calendário de prestação de contas.

Em apenas 221 municípios (34%) não foi configurada qualquer hipótese de gastos excessivos. Ao todo, 162 prefeituras foram notificadas pelo Tribunal para que adotem providências para a recondução dos limites de gastos com pessoal. Destas, 45 ultrapassaram o limite de alerta - ou seja, já gastam acima de 90% do limite legal. De acordo com a lei, elas terão de reduzir despesas com cargos em comissão e de confiança, exonerar servidores não estáveis e evitar contratações não fundamentais.

Já 104 municípios atingiram o limite prudencial, gastando com pessoal 95% do permitido. Além das medidas apontadas acima, a estas prefeituras estão vedados aumentos, reajustes ou adequação de remuneração; criação de cargos, empregos ou funções; alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa; provimento de cargo público, admissão ou contratação de pessoal; além de contratação e pagamento de hora extra.

A situação mais grave é a das 13 prefeituras que ultrapassaram 100% dos limites da LRF, o que as obriga a extinguir cargos e funções; reduzir temporariamente a jornada de trabalho; deixar de receber transferências voluntárias ou obter garantias diretas ou indiretas; e não contratar operações de crédito, exceto em relação ao financiamento da dívida mobiliária e que vise à redução de despesas com pessoal.

Muitos parlamentares no Congresso dizem que a PEC Emergencial perdeu importância. Não perdeu. Se já estivesse vigente, os gestores teriam em mãos ainda mais mecanismos de controle.

Mal saído de uma recessão, em grande parte agravada pelo descontrole dos gastos com pessoal, o País está a ponto de mergulhar em outra junto com o resto do mundo. O quadro é ainda mais pavoroso porque a calamidade econômica se mistura a uma calamidade sanitária ainda sem desfecho certo. Com as medidas de contenção, as receitas das empresas derretem a olhos vistos. Para frear o desemprego em massa, uma das propostas do governo é que os empregadores possam reduzir as jornadas de trabalho e cortar os salários pela metade. As quarentenas que estão se espalhando pelo País suprimem do dia para a noite o ganha-pão de uma multidão de informais. Isso sem falar nos subempregados e desempregados que veem a sua chance de reinserção no mercado se perder de vista.

Nos anos de recessão passados, os empregos, rendas e privilégios do funcionalismo não foram sequer arranhados. Ao contrário: entre 2013 e 2018, enquanto milhões foram jogados na fila do desemprego e a massa salarial do setor privado encolheu 0,7%, os vencimentos dos agentes públicos cresceram 12%. Agora, é imperativo que o funcionalismo também dê a sua cota de sacrifício.

BC acerta ao seguir cartilha do regime de metas de inflação – Editorial | Valor Econômico

O máximo que o Banco Central consegue fazer é suavizar os movimentos da taxa de câmbio e dar um pouco de racionalidade aos mercados

A pandemia do coronavírus coloca à prova, mais uma vez, o regime de metas de inflação com câmbio flutuante. Embora, no detalhe, a atuação do Banco Central sempre esteja sujeita a críticas, os sinais são de que esse arcabouço está permitindo uma resposta adequada à crise.

Na semana passada, o Banco Central cortou os juros básicos em 0,5 ponto percentual, de 4,25% ao ano para 3,75% ao ano. Muitos economistas achavam que seria necessário cortar mais ainda - talvez um ponto percentual - para atenuar a forte queda da inflação que deverá ocorrer com a desaceleração econômica. Outros achavam que, num cenário ainda bastante incerto, em que é difícil estimar os impactos da crise nos índices de preços, o BC deveria se mover com uma cautela ainda maior.

Ambos são pontos de vista legítimos, já que focam no que é o objetivo da taxa de juros: cumprir as metas de inflação, com a preocupação subsidiária de suavizar a oscilação do Produto Interno Bruto (PIB). O que parece equivocado é limitar o uso da política monetária para evitar uma maior depreciação do câmbio.
A taxa de câmbio importa dentro do regime de metas de inflação apenas na medida em que esse é um canal de transmissão da política monetária e também um determinante da inflação. Mas os juros não devem deixar de mirar a inflação, minimizando a flutuação do PIB, apenas para estabilizar a taxa de câmbio.

O que ocorreu nos dias seguintes à decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central mostra que esses receios eram exagerados. A cotação do dólar chegou a R$ 5,20 na quinta-feira, mas num dia de aversão a risco nos mercados globais - e depois cedeu. O real não foi um destaque negativo naquele dia. Países emergentes, no conjunto, sofreram bastante. Na sexta-feira, o dólar chegou a cair momentaneamente abaixo de R$ 5 durante o pregão.

O Banco Central não deve usar os juros com vistas a estabilizar o dólar porque um único instrumento não é capaz de perseguir dois objetivos ao mesmo tempo. Se o foco for no dólar, os juros deixarão de agir para estabilizar a economia doméstica.

O Banco Central tem agido, também, para garantir o bom funcionamento do mercado de câmbio. Seu arsenal de intervenção vem aumentando proporcionalmente à gravidade da crise. Além de swaps cambiais, estão sendo oferecidos ao mercado dólares à vista e linhas de empréstimo em dólares. A novidade na semana passada foi o anúncio de operações compromissadas em dólares com os bancos, com lastro em títulos da divida externa soberana, os global bonds.

A exemplo da atuação do BC na política monetária, pode-se discutir no detalhe se os volumes ofertados são adequados ou se valeria a pena anunciar um grande programa de intervenção. Mas o sucesso da atuação do BC no câmbio não se mede pelo nível da taxa de câmbio. Não seria prudente tentar impedir uma tendência de desvalorização cambial, mesmo que maior do que a observada em outras economias.

O máximo que o Banco Central consegue fazer é suavizar os movimentos da taxa de câmbio e dar um pouco de racionalidade aos mercados. Em períodos de maior incerteza, a formação de preços fica prejudicada. O excesso de intervenções do BC, como ocorreu entre 2013 e 2014, apenas adiaria um inevitável ajuste na taxa de câmbio - que tenderia a se materializar com força mais tarde, como ocorreu em 2015.

Se o câmbio está subindo, em boa medida reflete o contexto internacional e a realidade da economia brasileira. O regime de metas de inflação com câmbio flutuante tem se mostrado resiliente ao longo do tempo, mas é bom notar que depende também da terceira perna do tripé de política macroeconômica. Sem a âncora fiscal, não há regime monetário e cambial que seja capaz de sustentar a economia.

Na crise do coronavírus, está claro que será necessário flexibilizar temporariamente as regras fiscais para que o governo dê uma resposta adequada à crise na saúde e seus impactos na economia. Mas o foco no ajuste fiscal de longo prazo, sem prejuízo às ações emergenciais de curto prazo, é essencial para o equilíbrio interno e externo da economia.

Muito da depreciação cambial e alta da curva de juros longa reflete ruídos políticos criados pelo próprio governo com o Congresso, além da aprovação de projetos que ampliam os gastos de forma permanente e extrapolam a resposta emergencial à atual crise.

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