terça-feira, 26 de maio de 2020

Pedro Cafardo - Ele poderia pelo menos derramar uma lágrima

- Valor Econômico

O presidente perdeu grande oportunidade de unir o país

Vendo a fatídica reunião ministerial e observando que a pandemia não foi citada pelo presidente da República, fica claro que por arrogância ou mesmo por burrice ele perdeu uma grande oportunidade para se tornar um líder a ser lembrado pelos brasileiros durante gerações.

Em situações de fragilidade política ou econômica, os líderes, muitas vezes por oportunismo, costumam fabricar guerras para unir o povo em torno de um objetivo comum. George W. Bush, por exemplo, declarou “Guerra ao Terror” em 2001, invadiu o Iraque em 2003 e se reelegeu em 2004.

Aqui, o presidente não precisava inventar nada. Quando já estava sob pressão da recessão em curso, caiu no colo dele uma guerra mundial em que todos estão no mesmo lado e poderia unir o país. A patologia domina tanto seu comportamento que não percebeu que ele não precisaria criar inimigos locais e menores. Tinha um inimigo contra o qual todos lutariam a seu lado.

Imagine-se que, no início da pandemia, ele tivesse logo admitido a autoridade da OMS para o enfrentamento da covid-19 e determinado que seu ministro da Saúde seguisse ipsis litteris todas as orientações da entidade.

Em vez de ficar durante dois meses desdenhando a doença, que chamou de “gripezinha”, poderia ter feito um pronunciamento convocando todos os brasileiros, inclusive os petistas que votaram em Fernando Haddad, para fazer parte de um mutirão nacional para salvar vidas. Diria em discurso que não existe vírus de direita ou de esquerda. Que naquele momento estava esquecendo todas as desavenças eleitorais, a facada de Juiz de Fora e as divergências ideológicas para convocar os brasileiros verde-amarelos ou vermelhos para uma batalha de vida ou morte.

Dificilmente o presidente enfrentaria oposição a uma atitude como essa. Quem ficasse contra seria execrado nas mídias. Ele poderia então dizer que as reformas, admiradas pela classe empresarial, ficariam hibernando durante alguns meses, até que a batalha contra o vírus terminasse. Sob seu comando, formaria um conselho com entidades médicas para decidir as políticas públicas na área sanitária.

Outro conselho, com políticos e economistas, estabeleceria medidas para enfrentar a perda de renda dos trabalhadores, as dificuldades de caixa das empresas e a recessão econômica. Ninguém poderia se recusar a participar dessas iniciativas. A oposição seria desarmada e ele poderia colocar a responsabilidade pela recessão, embora já prevista antes da pandemia, na tragédia global. Poderia produzir um déficit fiscal do tamanho que quisesse. A crise global seria justificativa para tudo.

A Presidência da República, tão ágil para operar nas redes sociais, poderia aproveitar essa expertise e enviar diariamente mensagens personalizadas às famílias das vítimas, manifestando pesar pelas perdas. Seria um carinho certamente muito admirado pelos brasileiros, tivessem eles votado ou não no presidente. Mas não, ele resolveu contrariar a ciência e desdenhar a importância da doença, como se fosse um curandeiro enviado dos céus.

Ainda hoje, com mais de 23 mil brasileiros mortos, o presidente e sua equipe próxima procuram argumentos para passar a ideia de que há exagero da mídia ao noticiar o avanço da covid-19. Não importam as tristes imagens dos choros de parentes de mortos, das covas abertas às milhares, dos caixões enfileirados. Tudo é considerado exagero da mídia, terrorismo com o povo. Grave é que pessoas humildes tendem a acreditar nisso, até que morra alguém da família.

Um dos ministros chegou a fazer comparações entre o número de mortos vítimas de câncer com os da covid-19. Esqueceu-se da elementar diferença de que a segunda é uma doença contagiosa, que aumenta em proporção geométrica se não for contida por remédios, vacinas ou isolamento social. E não temos nem remédios nem vacinas.

Fanáticos aficionados do presidente cobram da mídia tradicional imparcialidade para ouvir o “outro lado”: aqueles que defendem a inexpressividade da doença e a facilidade com que ela poderia ser curada pelo uso de um remédio milagroso, a cloroquina, cuja ineficácia já foi comprovada pela ciência. Dar espaço a essas opiniões seria como dar visibilidade a pessoas que defendem teses absurdas, como a de que Terra não é redonda. Posições como essas só poderiam sair em seções humorísticas.

Alguns líderes mundiais aumentaram sua popularidade durante a pandemia, porque se solidarizaram, lutaram e choraram ao lado dos cidadãos. O presidente da Argentina, Alberto Fernández, que estava com índices de popularidade em queda, recuperou-se por sua atuação na crise sanitária. O próprio americano Donald Trump inicialmente desdenhou a doença, mas depois mudou de posição ao ver o avanço das infecções e das mortes. Aqui, o presidente imitou Trump à risca na sua fase negacionista e não teve sagacidade para imitá-lo de novo quando ele se rendeu à ciência.

Nunca é tarde para admitir erros. O prefeito de Milão, Giuseppe Sala, no início da epidemia na Itália compartilhou um vídeo com o slogan “Milão não para”. Pouco tempo depois, percebeu o erro, pediu desculpas à população e parou Milão.

Dificilmente o presidente terá hombridade para admitir que errou, pedir desculpas, aceitar os postulados da ciência e tornar o governo brasileiro civilizado.

Não dá para saber se, em uma mudança radical, o presidente será capaz de derramar pelo menos uma lágrima pelos mortos. Nem se uma mudança de comportamento, a esta altura, seria benéfica ou não à sua imagem. Talvez seja tarde demais para que os brasileiros venham a se esquecer das bobagens que disse e dos maus exemplos que deu. De qualquer forma, seria muito bom para o Brasil e os brasileiros. Juntos, sem viés partidário, certamente será possível salvar a vida de milhares de pessoas.

Se não por misericórdia, pelo menos por oportunismo, o presidente da República poderia ter unido o país. É guerra. Mas temos no comando alguém que não nasceu para general nem para estadista.

Nenhum comentário: