- Folha de S. Paulo
O Estado é uma potencial ameaça à liberdade, mas não a única; a opinião pública também é
Como no Brasil tudo é possível, não foram poucos os autoproclamados liberais que embarcaram com entusiasmo no bolsonarismo. O casamento de aparências tem durado, mas depois de assistirmos ao vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, aquele mix insólito de Escolinha do Prof. Raimundo e discurso fascista, alguém ainda acredita que exista amor?
Um a um, cada ministro fazia sua esquete. Desnudou-se a essência do governo: bajulação do líder, arroubos militantes e preocupação única e exclusiva com o projeto de poder. A maior epidemia em cem anos? Importava apenas na medida que colocou governadores como rivais do presidente, e como cortina de fumaça para passar o trator na Amazônia.
Bolsonaro expressou seu desejo de uma população armada para intimidar prefeitos e governadores. Isso caberia num congresso chavista; mas num governo que se diz “liberal”?
Vamos definir os termos. Liberal é quem defende o valor da liberdade individual para a vida em sociedade. Isso começa com um sistema político no qual haja equilíbrio de poderes e limites a seu exercício.
Só assim podemos ter uma sociedade civil com dinamismo próprio, que não apenas orbite —por coação ou bajulação— a autoridade política.
E só assim as pessoas podem ser livres para viver suas vidas de acordo com seus valores e crenças, dando seu melhor e assumindo risco de suas escolhas, dentro de limites necessários para a boa convivência e o respeito à lei.
Ser liberal não é ser contra o Estado. Ele é uma potencial ameaça à liberdade, mas não a única. Como bem nos lembra John Stuart Mill em “Sobre a Liberdade”, a opinião pública também é. Pouco se tem falado desse efeito do projeto bolsonarista: a corrosão da sociedade civil e do debate público.
Massas de fanatizados gritando, ameaçando, xingando a Rede Globo e Sergio Moro de “comunistas”, atacando jornalistas e espalhando fake news são nocivas à liberdade individual, que requer pensamento maduro, responsabilidade e compromisso com a verdade.
“Ah, mas o Guedes…”. Sim, o ministro Paulo Guedes tem uma agenda de reformas liberais na economia. Ótimo. A liberdade econômica é condição necessária, mas não suficiente, de uma sociedade liberal. E mesmo esse plano abstrato tem tido pouco sucesso prático.
Em 2019, quando os ventos sopravam a favor, o governo entregou basicamente a reforma da Previdência, e com atraso. Nada de abertura, nada do “trilhão” das privatizações. Neste ano, com Congresso mais hostil, demandas de gasto da epidemia e necessidade de compor com o centrão, os ventos sopram contra. Será que as entregas econômicas vão aumentar?
As promessas grandiosas de Guedes não se cumprem e começam a gerar ceticismo. Na reunião ministerial ficou clara a rivalidade entre ele e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.
Isso sem falar daquilo que prometeu e não fez: reforma tributária, administrativa. Em seu lugar, fala de nova CPMF e de contratar jovens para fazer estrada e jurar à bandeira. Defendeu o equilíbrio fiscal para Bolsonaro porque este afastaria o risco de impeachment.
Um presidente autoritário interfere nos órgãos de controle e insufla uma militância golpista. No meio disso, abraça o que há de mais fisiológico na política nacional, enquanto o ministro da Economia discute Keynes. Saúde pública e economia afundam. Ninguém parece saber o que está fazendo. Bajulação, fanatismo, autoritarismo e bagunça. Se essa é a tão propalada “primavera liberal”, imagine o inverno.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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