- O Estado de S.Paulo
No primeiro ano deste governo aumentou a miséria, que crescerá mais com a pandemia
Para os sequazes do presidente, ou se é bolsonarista ou se é de esquerda. Pior, “comunista”. Essa dicotomia radical decorre da devoção a líder atleta salvador da pátria.
É assustador que falar de justiça social seja tido como tema esquerdista em país onde parcela imensa da população vive abaixo da linha de pobreza. Em notícia do Jornal da USP, no início do mandato de Bolsonaro, segundo os indicadores sociais do IBGE, 54,8 milhões de brasileiros estavam abaixo da linha da pobreza, ou seja, um quarto da população nacional tem renda domiciliar por pessoa inferior a R$ 406 por mês, de acordo com os critérios adotados pelo Banco Mundial.
Em novembro de 2019, passado um ano de governo Bolsonaro, a situação não melhorara, conforme o IBGE: a extrema pobreza aumentou no Brasil, somando 13,5 milhões de pessoas sobrevivendo com renda mensal per capita de até R$ 145, recorde em sete anos, e quase um quarto da população brasileira, 52,5 milhões de pessoas, ainda vivia com menos de R$ 420 per capita por mês.
A desigualdade social é secular, em grande parte herança da escravidão, pois a abolição jogou os ex-escravos, destituídos de qualificação, no mercado de trabalho sem condições de competição e possibilidades de progredir por ausência de educação e saúde. Daí (desculpem o uso dessa expressão), a constatação de que “a pobreza atinge sobretudo a população preta ou parda, que representa 72,7% dos pobres, em números absolutos, 38,1 milhões de pessoas”.
A questão social já fora abordada por Rui Barbosa em famoso discurso no Teatro Lírico no Rio de Janeiro na campanha presidencial de 1919, no qual pergunta: “Mas o que fizeram dos restos da raça resgatada os que lhe haviam sugado a existência em séculos da mais ímproba opressão?”. Rui conclui ter sido a abolição uma ironia atroz, pois “ao dar liberdade ao negro, desinteressando-se, como se desinteressaram, absolutamente de sua sorte, não vinha a ser mais do que alforriar os senhores”. E aponta o mestre: “Nem instrução, nem caridade, nem a higiene intervieram de qualquer modo”.
A questão social foi objeto de largos estudos ao longo do tempo. Cabe destacar a atenção dada ao problema pelo fórum nacional organizado por Reis Velloso. O estudioso Roberto Cavalcanti de Albuquerque tem por critério não apenas os níveis de rendimento, mas indicadores sociais como educação, saúde, trabalho, rendimento e habitação. Mostra, então, ter havido declínio do crescimento anual nos anos 1980, fruto da crise do petróleo, da dívida externa e da inflação.
Propõe, de conseguinte, em 2004, programa de redução da pobreza para “capacitar os pobres a serem sujeitos de suas próprias inclusões econômico-sociais”. Atendido esse programa, calculou que a extrema pobreza, no porcentual de 12,87% da população, poderia reduzir-se a 4,4% em 2015 (Cinco décadas de Questão Social, Rio de Janeiro, José Olympio, 2004, pág. 141). Enganou-se.
O desastroso segundo governo Dilma jogou o Brasil na recessão e o primeiro ano do governo Bolsonaro no campo social e econômico foi também negativo, proporcionando um aumento da miserabilidade, como antes assinalado.
Medida de grande alcance social, tornada evidente na pandemia, consiste na alteração da legislação relativa ao saneamento básico. O Projeto de Lei n.º 3.261 de 2019, de autoria do senador Tarso Jereissati, baseado em medida provisória de Michel Temer, altera a Lei n.º 11.445, de 5 de janeiro de 2007 (Lei do Saneamento Básico), buscando dar condições estruturais do saneamento básico no País. No caso, todavia, a iniciativa foi do Congresso.
Dos indicadores sociais, portanto, destacam-se: a saúde e a educação. Na área da saúde, o governo federal, em plena pandemia, só conspirou em desfavor das medidas de precaução da disseminação do vírus. Hoje o ministério está militarmente ocupado. No campo da educação o desastre foi total: Weintraub, centurião do bolsonarismo, pretendendo prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal. Agora se chegou a nomear um pretenso pós-doutor reprovado no doutoramento: fake currículo.
Mas, para os bolsonaristas raiz, criticar o chefe é ser esquerdista e “comprometedor” preocupar-se com justiça social e direitos das minorias. Essa narrativa nada tem que ver com o impeachment de Dilma, quando se buscou livrar o País do desastre econômico, que se aprofundaria se ela ficasse no poder, e do aparelhamento do Estado viabilizador da corrupção sistêmica em benefício do PT e de outros partidos.
A corrupção não é de esquerda ou de direita, é negativa. A busca de redução da desigualdade social também não tem lado, é medida de justiça.
Posso concluir com Rui Barbosa, para quem o egoísmo deve ceder frente à solidariedade humana, para se admitir a democracia social visando a reparar os agravos sofridos pela classe miserável, que, infelizmente, crescerá com a pandemia.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
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