segunda-feira, 22 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Só antibolsonarismo não basta – Opinião / O Estado de S. Paulo

É preciso aproveitar a convergência na oposição para articular projeto que vá além da interrupção da esbórnia bolsonarista

A inédita crise social, econômica e humanitária causada pela pandemia de covid-19 no Brasil, associada à forma irresponsável e muitas vezes criminosa como o governo de Jair Bolsonaro a administrou até aqui, parece ter dado ensejo ao que parecia impossível: algum entendimento entre forças políticas de centro e de esquerda que há tempos se tratam aos empurrões.

É prudente não nutrir grande entusiasmo, dado o histórico de desavenças e o caráter de alguns dos personagens envolvidos, mas nos últimos dias petistas e tucanos vêm se tratando de maneira razoavelmente civilizada e têm demonstrado genuína disposição de colaborarem uns com os outros para enfrentar a pandemia – e, por tabela, a insanidade disseminada pelo bolsonarismo no País.

“É hora de dar os braços ao João Doria, ao Eduardo Leite, independente (da eleição) de 2022. É a hora de os líderes demonstrarem grandeza”, disse ao Estado o governador do Piauí, o petista Wellington Dias, referindo-se aos governadores de São Paulo e do Rio Grande do Sul, ambos tucanos. Por terem adotado medidas de restrição para conter a pandemia e por serem dois dos principais críticos de Bolsonaro, Doria e Leite vêm sendo atacados brutalmente pelo presidente e por seus camisas pardas nas redes sociais.

O governador Dias falava como emissário do ex-presidente Lula da Silva, que pretende se incluir no esforço de governadores para obter vacinas – com seu alegado prestígio internacional, o ex-presidente acha que pode ser útil. É claro que, em se tratando de Lula da Silva, não há ponto sem nó, mas, nas atuais e dramáticas circunstâncias, já será de grande ajuda se o chefão petista pelo menos não atrapalhar.

Noves fora as eventuais artimanhas de Lula, o fato é que é raríssimo ouvir da boca de um petista graduado como o governador Dias um chamamento tão claro à superação de divergências com vista ao enfrentamento de uma crise que será sentida por gerações. E o gesto encontrou um lado tucano aparentemente inclinado a colaborar, não apenas contra a pandemia, mas contra a insanidade bolsonarista.

Assim, é parte desse balé político a ordem do governador Doria para investigar ameaças feitas a Lula por um bolsonarista na internet – o tucano, feroz adversário do PT, chegou a ligar para a presidente petista, Gleisi Hoffmann, para comunicar as medidas que tomou. Ele mesmo vítima de delinquentes bolsonaristas nas redes, o governador paulista parece disposto a deixar de lado momentaneamente suas profundas diferenças com o PT em nome do combate ao extremismo liderado pelo presidente.

Nada disso é por acaso. Ocorre em meio à reorganização das peças no xadrez da eleição de 2022, em razão da ressurreição de Lula da Silva como candidato. Tudo, portanto, passa por cálculo político, mas parece haver algo mais do que isso: trata-se de uma tomada de consciência de que não pode haver divergência política insuperável ante o imperativo de impedir a reeleição de Bolsonaro.

Assim, o antibolsonarismo – sentimento crescente no País, conforme atestam as mais recentes pesquisas – tende a ser o pilar da campanha dos candidatos de oposição. É tentador, portanto, oferecer aos eleitores um nome que se apresente como o oposto absoluto do presidente e de tudo o que ele representa.

Pode até servir para ganhar a eleição, mas tal projeto nada diz sobre o futuro do País. Corre-se o risco de repetir o que fez o próprio Bolsonaro, que nos palanques se apresentou como a encarnação do antipetismo e, uma vez no poder, pelo menos até este momento, limitou-se a destruir o que havia, sem erguer quase nada que prestasse no lugar.

É preciso aproveitar esse raro momento de convergência política na oposição para articular um projeto que vá além da promessa de interrupção da esbórnia bolsonarista. Será um alívio não ter mais Bolsonaro na cadeira presidencial, é claro, mas quem vier a ocupá-la deve ser portador de um grande entendimento nacional para superar as condições que, em primeiro lugar, permitiram que Bolsonaro chegasse lá. A restauração da inteligência no governo e na política é fundamental, mas é apenas o primeiro passo da longa caminhada para reconstruir o País.

A árdua luta pela vida – Opinião / O Estado de S. Paulo

À falta de insumos vitais, médicos duelam contra a morte sem paridade de armas

O crescimento vertiginoso do número de casos de covid-19 em quase todo o País – apenas Amazonas e Roraima registram queda na média móvel diária – impõe duplo grau de sofrimento aos enfermos e a seus familiares. O primeiro é o temor de não conseguir socorro num hospital. Como se isto não bastasse, uma vez admitido, o paciente não tem garantia de que receberá o tratamento adequado. Falta de tudo em muitos hospitais, desde equipamentos de proteção individual (EPIs) até cilindros de oxigênio, medicamentos para intubação e, principalmente, recursos humanos.

A disseminação descontrolada do vírus – sobretudo a cepa de Manaus (AM), mais contagiosa – tem revelado a faina para salvar vidas que é o dia a dia dos profissionais de saúde em sua luta contra o patógeno. As equipes estão física e emocionalmente esgotadas. E, privadas de insumos vitais mínimos para exercer seu trabalho e prestar um tratamento digno aos doentes, veem-se digladiando com a morte num duelo sem paridade de armas.

Em muitos municípios Brasil afora, ricos ou pobres, já não há mais leitos de enfermaria ou de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para receber não apenas os acometidos por covid-19, mas por qualquer outra enfermidade que demande atendimento hospitalar. Os pacientes não são sequer admitidos à entrada, tendo de se haver com a própria sorte. Nessas cidades, médicos são obrigados pelas circunstâncias dramáticas a tomar uma das mais difíceis decisões da profissão: escolher quem vive e quem morre por falta de atendimento. Em outros municípios, os sistemas público e privado de saúde operam muito próximos do limite da capacidade. O colapso é iminente.

É inaceitável que pacientes morram na fila de espera por atendimento, sem ao menos terem uma chance na árdua luta por suas vidas. Já passou da hora de o Ministério da Saúde coordenar com as Secretarias da Saúde dos Estados e municípios e com a indústria nacional os esforços necessários para organizar minimamente o enfrentamento da pandemia. A perversa combinação de incompetência e veleidades políticas está matando brasileiros. Até quando? Que número de mortos por dia será o limite “tolerável” para que medidas para dar fim a este horror sejam tomadas?

A precariedade dos estoques de cilindros de oxigênio e de medicamentos usados para intubar os pacientes, como sedativos, anestésicos e bloqueadores musculares, é particularmente alarmante. A falta de uns e de outros significa a submissão dos doentes à extrema agonia. No dia 17 passado, o Ministério da Saúde emitiu à indústria farmacêutica uma ordem de entrega do estoque desses fármacos. É um total de 665,5 mil comprimidos, o que supre a necessidade do Sistema Único de Saúde (SUS) por apenas 15 dias.

A calamidade na saúde impõe outro enorme desafio para as equipes de terapia intensiva. A intubação de um paciente é um procedimento altamente especializado, de elevado grau de risco, tanto para médicos, dado o risco de contaminação pelo vírus, como, e principalmente, para os doentes. Nem todos os profissionais de saúde que atuam nas UTIs estão aptos a realizar a manobra. Fazem-na na ânsia por salvar vidas.

Em vez de tomar decisões aos sobressaltos, melhor faria o Ministério da Saúde se planejasse a compra desses medicamentos em constante contato com os entes federativos. “Não há problema de produção. A indústria só precisa receber a demanda de forma clara e organizada”, disse ao Estado Reginaldo Arcuri, presidente do Grupo FarmaBrasil. 

Mas é difícil esperar que a pasta atue de forma “clara e organizada” enquanto houver, na prática, dois ministros da Saúde, um que ainda não saiu, outro que ainda não entrou. Sem entendimento, não é dada à sociedade uma direção clara das ações do governo daqui para a frente.

Como se vê, passado um ano do início deste flagelo, o País paga o alto preço da desídia e do negacionismo.

O dever da CPI se impõe – Opinião / O Estado de S. Paulo

Omissão na abertura da CPI da pandemia indicaria alheamento da realidade

Frente a tantas e tão frequentes confusões, omissões e escárnios por parte do presidente da República na pandemia de covid-19, há quem se questione até quando o País terá de suportar tal descalabro moral, cívico e administrativo. Em geral, essa pergunta traz implícita a expectativa de que, em algum momento, a população vai reagir de forma explícita e contundente contra a atuação caótica de Jair Bolsonaro. 

Em relação a esses questionamentos, é preciso lembrar que a população não precisa sair às ruas para se manifestar contra o presidente da República, seja porque o País vive um momento dramático em relação à pandemia – a recomendar um cuidadoso isolamento social –, seja porque – eis a principal razão – já existe um caminho para que a população faça valer a sua vontade: o Congresso.

É equivocada a ideia de que o País não dispõe dos meios para enfrentar o descalabro que é o comportamento de Jair Bolsonaro na pandemia. A Constituição de 1988 proporcionou os instrumentos necessários, que não se restringem, como às vezes equivocadamente se pensa, aos relacionados com o Poder Judiciário ou o Ministério Público. O legislador constituinte atribuiu ao Poder Legislativo, expressão máxima da representação popular no regime democrático, o dever de fiscalizar o Poder Executivo.

Para cumprir a contento essa incumbência, a Constituição previu, entre outros instrumentos, a possibilidade de o Legislativo criar as comissões parlamentares de inquérito, as CPIs. “As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”, diz o art. 58, § 3.º da Constituição.

A CPI faz parte do aparato de defesa próprio de um regime democrático, com a instauração de um processo investigativo levado a cabo pelos próprios representantes da população. Tais comissões não são um teatro. Basta ver que a Constituição lhes assegura “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.

Trata-se, portanto, de um instrumento para investigar e, assim, atribuir responsabilidades políticas e jurídicas a quem deu causa aos fatos apurados. Depois de mais de um ano de pandemia de covid-19, não faltam motivos para apurar a atuação do Palácio do Planalto. Basta pensar que, nesse período, o País teve nada mais nada menos que quatro ministros da Saúde.

Num Estado Democrático de Direito, há situações nas quais não basta a atuação do Judiciário ou do Ministério Público, que não são representantes da vontade popular e, em razão de suas competências específicas, devem se pautar por um estrito rigor legal. É preciso que o próprio Legislativo volte sua atenção para tais situações, de forma a dar uma resposta satisfatória à população.

Atualmente, há na mesa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), um pedido de abertura de CPI relativo à condução da pandemia pelo governo federal que cumpre todos os requisitos constitucionais, assinado por 31 senadores de 11 partidos políticos. Deixá-lo na gaveta, como se fosse algo politicamente turbulento demais para o momento atual, não é apenas ignorar a Constituição ou ser cúmplice com o descaso do presidente Jair Bolsonaro com a saúde e a vida da população.

Eventual omissão na abertura da CPI da pandemia manifestaria alheamento da realidade humana, sanitária, social, econômica e política do País. Seria uma trapaça com a população, vinda justamente do Legislativo, a quem compete representar de forma plural e efetiva os anseios da população.

Na atual situação do País, não é preciso coragem para abrir a CPI, tampouco é necessária uma sofisticada compreensão dos deveres constitucionais do Legislativo. Basta olhar para o povo brasileiro.

Mais infraestrutura – Opinião / Folha de S. Paulo

Congresso aprova textos cruciais para facilitar investimento em gás e saneamento

Uma das poucas boas notícias vindas de Brasília nos últimos dias foi o avanço da pauta de modernização da infraestrutura. Dependem ou dependiam do Congresso projetos que rompem com décadas de paralisia regulatória e poderão facilitar investimentos em setores cruciais como energia, transportes, saneamento e telecomunicações.

Na semana passada houve dois passos importantes. O primeiro foi a aprovação final do texto que altera as normas no setor de gás, em um processo iniciado ainda no governo Michel Temer (MDB).

As novas regras visam aumentar a concorrência, removendo uma infinidade de gargalos. A Agência Nacional de Petróleo (ANP) ganha mais poderes para regular a comercialização e definir parâmetros nacionais para os contratos.

A construção de gasodutos e terminais de armazenagem passa a um regime de autorização, mais flexível que o anterior, de concessão. Haverá ainda garantias de direito de passagem, com acesso de terceiros interessados à infraestrutura, até aqui quase monopolizada pela Petrobras.

Também deve ocorrer o desinvestimento por parte da Petrobras de 19 de suas 27 participações em distribuidoras estaduais de gás, parte de um acordo de conduta celebrado em 2019 pela estatal com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a ANP.

Por fim, ficam limitadas as possibilidades de contratos entre empresas do mesmo conglomerado, um ponto importante para evitar a formação de novos monopólios. Nos próximos dois anos a agência deve avançar nas definições dos parâmetros técnicos e concorrenciais que nortearão o mercado.

Com as mudanças espera-se o aparecimento de novos participantes em toda a cadeia do setor, o que vem a calhar num momento em que se espera forte crescimento da oferta de gás nas áreas do pré-sal. O novo ambiente de mercado deve permitir significativa redução nos custos nos próximos anos, com benefícios principalmente para a indústria.

Outro progresso notável foi a conclusão da votação do marco regulatório do saneamento, em que foram mantidos vetos presidenciais que se mostravam fundamentais para a modernização do setor.

Em particular, manteve-se o veto à renovação sem licitação por 30 anos dos atuais contratos de prefeituras com estatais, o que vai acelerar as novas concessões em regime de concorrência. Há 1.160 contratos precários ou que vencem em até cinco anos e agora se adequarão às novas regras.

São avanços importantes que vão se acumulando para tornar o país mais atrativo para investimentos e, no caso do saneamento, pôr fim a vergonhosas carências.

Jogada paroquial – Opinião / Folha de S. Paulo

Para dar privilégio às igrejas, Bolsonaro estimula derrubada de seu próprio veto

No intuito de auferir vantagens pessoais ou eleitorais, Jair Bolsonaro não titubeia em atropelar os interesses do Estado, subvertendo atribuições fundamentais do Poder Executivo e enfraquecendo mecanismos institucionais pelos quais deveria zelar.

Esse comportamento incendiário ficou mais uma vez explícito na derrubada pelo Parlamento dos vetos presidenciais referentes a dívidas fiscais e previdenciárias das igrejas, cujo incentivador maior foi ninguém menos que aquele que os havia imposto.

O despautério partiu do Congresso. Em setembro, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto permitindo que as igrejas deixassem de pagar a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Como se o milagre fosse pouco, ainda as anistiou de dívidas tributárias que somam mais de R$ 1 bilhão.

Tais débitos relacionam-se a cobranças feitas pela Receita Federal, que nos últimos anos identificou manobras de templos para distribuir lucros e remuneração variável a funcionários sem o devido pagamento de tributos.

O que já seria mais que questionável em condições normais ganha ares de escândalo no atual estado de penúria das contas públicas.

As igrejas, como se sabe, gozam há mais de 70 anos de imunidade constitucional para tributos, dispositivo que impede União, estados e municípios de cobrar impostos e contribuições que incidam sobre o patrimônio, a renda ou os serviços promovidos por centros religiosos. Com o projeto aprovado, o Congresso ampliou ainda mais esse rol de privilégios.

Pressionado pelo Ministério da Economia para que vetasse a norma, Bolsonaro deu uma no cravo e outra na ferradura.

O mandatário seguiu a recomendação técnica, alegando que poderia terminar incorrendo em crime de responsabilidade, por desrespeito à Lei de Diretrizes Orçamentárias e à Lei de Responsabilidade Fiscal.

Ato contínuo, porém, declarou que, caso fosse deputado ou senador, votaria pela derrubada do veto quando o projeto retornasse ao Congresso.

A jogada, paradoxal apenas na aparência, tem um sentido óbvio: permite a Bolsonaro afagar suas bases eleitorais sem arcar com o ônus político da decisão. Que para isso acabe corrompendo um instrumento essencial da Presidência, destinado a evitar a promulgação de leis contrárias ao interesse público, parece mero detalhe.

Funcionamento do teto de gastos não está garantido – Opinião / Valor Econômico

Economia já está pagando o preço pela falta de um verdadeiro compromisso do Executivo e do Legislativo com a agenda fiscal

Sozinho, o teto do gastos públicos não resolve a grave situação das contas públicas, mas é uma âncora importante até que se façam as reformas estruturais que poderão dar solidez fiscal ao país. Sua sobrevivência, porém, estava em risco, devido ao mau desenho na sua concepção, que deveria ser corrigido com a aprovação da chamada PEC Emergencial. Agora, os especialistas descobrem que esse instrumento legal também é falho.

O teto de gastos visa a reduzir, ao longo do tempo, o gasto público como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), ao limitar à inflação do ano anterior o crescimento da despesa em cada exercício. É um bom caminho para o Brasil retomar a trajetória virtuosa de superávits primários, sem lançar mão de novos aumentos de impostos, que chegaram a níveis muito altos para uma economia emergente.

Mas não pode ser entendido como o remédio que, sozinho, vai equacionar todos os problemas fiscais. O teto de gastos deveria ser um indutor de reformas fiscais que reduzam e tornem mais racionais as despesas públicas. Era esperado que, na sequência, fosse aprovada uma ampla reforma da Previdência Social e administrativa. Interesses corporativos, porém, limitaram o escopo da primeira e adiaram a segunda indefinidamente.

Na ausência de reformas amplas para conter os gastos obrigatórios, o teto de gastos deveria exercer sua ação disciplinadora, por meio de suspensão de reajustes, promoções na carreira. Não é o ideal, porque não equaciona as despesas de forma racional, cortando excessos e reforçando onde é necessário. De qualquer forma, cumprem seu papel. Mas, do jeito que foi desenhado teto de gastos, os gatilhos para adotar essas medidas não podiam ser acionados pelo governo, porque eles dependiam justamente de as despesas crescerem além do limite.

Criou-se uma situação em que as despesas obrigatórias seguem crescendo, com a compressão das despesas discricionárias. Até que chega um momento em que o espaço no Orçamento para as despesas discricionárias é tão pequeno que leva à paralisia de serviços do governo à população, o chamado “shutdown”. Justamente para resolver essa deficiência que foi desenhada a PEC Emergencial, promulgada como emenda constitucional 109. O princípio básico é que os gatilhos para segurar gastos obrigatórios sejam acionados antes de comprimir ao limite os gastos discricionários. Assim, se evita o “shutdown” do governo

A fórmula aprovada na PEC Emergencial aciona os gatilhos quando a despesa obrigatória chega a 95% das despesas totais. Muitos especialistas já vinham criticando esse percentual por ser muito elevado, porque na conta deles só seria ultrapassado em 2024 ou 2025. Agora, desconfia-se que, com um percentual tão alto de 95%, a regra não impede o “shutdown”. É o que mostra coluna do repórter especial do Valor Ribamar Oliveira (18/3).

O ponto fundamental é que, com o gatilho acionado quando a despesa obrigatória chegar a 95% do total, os recursos para os gastos discricionários já deverão estar abaixo do necessário para manter os serviços essenciais do governo à população. Foi por esse motivo que a equipe técnica da área econômica havia proposto um percentual de 94%. Mas houve uma decisão política do Palácio do Planalto pelos 95%.

As razões para a mudança ainda são obscuras. Mas sabe-se que, com um percentual de 94%, eram grandes as chances de serem acionados os gatilhos do teto de gastos em 2022. Ou seja, coincidência ou não, evita-se uma desagradável contenção de despesas justamente no ano eleitoral

O resumo é que a emenda constitucional é, aparentemente, inócua para resolver o problema a que se propôs. Esse é mais um ataque à credibilidade da âncora que, bem ou mal, tem segurando a tão questionada credibilidade das contas fiscais. Soma-se a outras más notícias na agenda econômica do governo, como a substituição de presidentes de estatais e a intromissão em assuntos internos de sua gestão, num ambiente já de poucos progressos na agenda liberal, como privatizações e abertura comercial.

A economia já está pagando o preço pela falta de um verdadeiro compromisso do Executivo e do Legislativo com a agenda fiscal, com a alta dos prêmios de risco país, a forte depreciação da moeda e as pressões inflacionárias, que empurraram o Banco Central a subir os juros na semana passada.

OCDE de olho no retrocesso do Brasil de Bolsonaro – Opinião / O Globo

Enquanto o Brasil tenta se converter em membro pleno da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o organismo está de olho no retrocesso do governo Jair Bolsonaro no combate à corrupção. Também acaba de fazer uma análise das disfunções do Judiciário brasileiro e de seus efeitos negativos na economia. Não são notícias animadoras para aquela que prometia ser uma das únicas conquistas da política externa bolsonarista.

Pela primeira vez em quase 30 anos, o Grupo de Trabalho Anti-Corrupção da OCDE decidiu monitorar a corrupção brasileira por meio de um subgrupo formado em dezembro por Estados Unidos, Itália e Noruega. As recomendações anteriores ao Brasil nesse campo não foram implementadas e, como não houve consenso sobre adotar medidas mais duras contra o país, decidiu-se criar esse inédito subgrupo para acompanhar a situação.

Enquanto os diplomatas devem estar debruçados sobre o naufrágio da Operação Lava-Jato ou discutindo a melhor tradução para a palavra “rachadinha”, no campo acadêmico, pesquisadores da OCDE acabam de divulgar uma avaliação nada abonadora do Judiciário brasileiro, não por acaso o ramo do governo essencial para o combate aos corruptos.

Nossa Justiça, diz o estudo, se notabiliza pelo tamanho gigantesco, pelo emaranhado de leis confusas e pela lentidão nas decisões. As distorções são conhecidas, e já houve mudanças, como a criação, em 2004, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de planejamento e acompanhamento administrativo dos tribunais. Mesmo assim, o estudo conclui que o Brasil precisa tratar da baixa eficiência do Judiciário para ajudar não apenas no combate à corrupção, mas sobretudo no crescimento econômico.

As mazelas do Judiciário, dizem os economistas Jens Matthias Arnold e Robert Grundke, são tão prejudiciais aos negócios quanto a falta de integração do país ao mundo, o complexo sistema tributário e os gargalos na infraestrutura. A demora na tramitação de processos é um dos obstáculos que apontam. Nas áreas civil e comercial, são necessários 900 dias para concluir um processo na primeira instância brasileira. Na Alemanha, o julgamento é feito em 200 dias, na Holanda, em 100. As empresas enfrentam aqui, segundo os autores, “significativa heterogeneidade em decisões judiciais”, causa de insegurança jurídica e desincentivo aos investimentos.

O contribuinte gasta muito com um Judiciário de baixa produtividade. Em 2018, o custo do Judiciário representava quase 1,4% do PIB e tinha uma taxa de resolução de casos de 30%. Na Noruega, o custo da Justiça era de pouco mais de 0,1% do PIB, e os tribunais concluíam 70% dos processos.

O Judiciário brasileiro teria de gastar proporcionalmente mais em tecnologia e comunicação. Mas quase 80% do Orçamento da Justiça se destinam a pessoal, incluindo pensionistas. A média nos países da OCDE é de 65%, portanto sobram mais recursos para a modernização tecnológica. No Brasil, eles não chegam a 10% das despesas.

Soma-se a isso o excesso de leis e de regulamentação, boa parte desatualizada, superposta e contraditória, ampliando a insegurança jurídica. O estudo não nega melhorias, mas elas ainda são insuficientes. O excesso de leis e normas também facilita a corrupção. 

Enfim, Supremo sepulta a odiosa tese da ‘legítima defesa da honra’ – Opinião / O Globo

Em 30 de dezembro de 1976, um crime chocou o Brasil. No cenário paradisíaco de Armação de Búzios, na Região dos Lagos, o empresário Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, disparou quatro tiros contra o rosto da namorada, a socialite Ângela Diniz — o último, quando ela já estava caída. O assassinato aconteceu na casa dos dois, na Praia dos Ossos, em meio a discussões acaloradas em que, segundo testemunhos, Ângela Diniz pediu o fim do relacionamento.

A brutalidade já seria suficiente para causar indignação. Mas teve mais. Defendido pelo criminalista Evandro Lins e Silva, Doca foi condenado em 1979 a apenas dois anos de prisão (com direito a suspensão condicional da pena), sob a tese da “legítima defesa da honra”. Ângela foi apresentada como uma mulher promíscua, e Doca, como a verdadeira vítima. A decisão, um marco sombrio na história da violência contra mulheres, inspirou séries de TV e gerou inúmeros movimentos e campanhas. Em julgamento posterior, Doca foi condenado a 15 anos de prisão.

Quase meio século depois do crime da Praia dos Ossos (e três meses depois da morte de Doca Street, aos 86 anos), o Supremo providenciou um enterro de luxo à “legítima defesa da honra”. Ao julgarem ação movida pelo PDT, os 11 ministros decidiram por unanimidade que a tese não pode ser aplicada em julgamentos no tribunal do júri como argumento de defesa em casos de feminicídio, por contrariar princípios da Constituição.

O relator do caso, ministro Dias Toffoli, afirmou que a tese corresponde a recurso “desumano e cruel”, usado “para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões”, contribuindo para a naturalização da cultura da violência contra as mulheres no Brasil.

É certo que, nesses 44 anos, o país mudou. Foram criadas delegacias especializadas, vieram as leis Maria da Penha (2006) e do Feminicídio (2015), inúmeros movimentos surgiram. Ao mesmo tempo, nada mudou. Assassinatos covardes como o de Ângela Diniz acontecem todos os dias. Basta trocar os cenários e mudar os nomes das personagens — Cláudia Lessin, Mônica Granuzzo, Daniella Perez, Tatiane Spitzner, Viviane Vieira do Amaral.

É louvável a decisão do Supremo de remover o entulho anacrônico dos tribunais, de modo a impedir que criminosos se beneficiem de brechas da lei para ficar impunes. Mas a sociedade precisa avançar. Tanto quanto punir os autores de feminicídio, é essencial impedir que esses crimes aconteçam com a regularidade de um folhetim. Mulheres são assassinadas mesmo sob medidas protetivas, como foi o caso da juíza Viviane do Amaral, morta na frente das filhas.

Há que criar políticas públicas — e as patrulhas Maria da Penha são um bom exemplo — para estancar a tragédia que nos avilta. Não há espaço numa sociedade civilizada para esse tipo de comportamento ignóbil. Como se argumentava numa época em que as redes sociais eram os muros pichados da cidade, “quem ama não mata”. E, se mata, tem que pagar pelo crime. 

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