É preciso aproveitar a convergência na oposição para articular projeto que vá além da interrupção da esbórnia bolsonarista
A
inédita crise social, econômica e humanitária causada pela pandemia de covid-19
no Brasil, associada à forma irresponsável e muitas vezes criminosa como o
governo de Jair Bolsonaro a administrou até aqui, parece ter dado ensejo ao que
parecia impossível: algum entendimento entre forças políticas de centro e de
esquerda que há tempos se tratam aos empurrões.
É
prudente não nutrir grande entusiasmo, dado o histórico de desavenças e o
caráter de alguns dos personagens envolvidos, mas nos últimos dias petistas e
tucanos vêm se tratando de maneira razoavelmente civilizada e têm demonstrado
genuína disposição de colaborarem uns com os outros para enfrentar a pandemia –
e, por tabela, a insanidade disseminada pelo bolsonarismo no País.
“É hora de dar os braços ao João Doria, ao Eduardo Leite, independente (da eleição) de 2022. É a hora de os líderes demonstrarem grandeza”, disse ao Estado o governador do Piauí, o petista Wellington Dias, referindo-se aos governadores de São Paulo e do Rio Grande do Sul, ambos tucanos. Por terem adotado medidas de restrição para conter a pandemia e por serem dois dos principais críticos de Bolsonaro, Doria e Leite vêm sendo atacados brutalmente pelo presidente e por seus camisas pardas nas redes sociais.
O
governador Dias falava como emissário do ex-presidente Lula da Silva, que
pretende se incluir no esforço de governadores para obter vacinas – com seu
alegado prestígio internacional, o ex-presidente acha que pode ser útil. É
claro que, em se tratando de Lula da Silva, não há ponto sem nó, mas, nas
atuais e dramáticas circunstâncias, já será de grande ajuda se o chefão petista
pelo menos não atrapalhar.
Noves
fora as eventuais artimanhas de Lula, o fato é que é raríssimo ouvir da boca de
um petista graduado como o governador Dias um chamamento tão claro à superação
de divergências com vista ao enfrentamento de uma crise que será sentida por
gerações. E o gesto encontrou um lado tucano aparentemente inclinado a
colaborar, não apenas contra a pandemia, mas contra a insanidade bolsonarista.
Assim,
é parte desse balé político a ordem do governador Doria para investigar ameaças
feitas a Lula por um bolsonarista na internet – o tucano, feroz adversário do
PT, chegou a ligar para a presidente petista, Gleisi Hoffmann, para comunicar
as medidas que tomou. Ele mesmo vítima de delinquentes bolsonaristas nas redes,
o governador paulista parece disposto a deixar de lado momentaneamente suas
profundas diferenças com o PT em nome do combate ao extremismo liderado pelo presidente.
Nada
disso é por acaso. Ocorre em meio à reorganização das peças no xadrez da
eleição de 2022, em razão da ressurreição de Lula da Silva como candidato.
Tudo, portanto, passa por cálculo político, mas parece haver algo mais do que
isso: trata-se de uma tomada de consciência de que não pode haver divergência
política insuperável ante o imperativo de impedir a reeleição de Bolsonaro.
Assim,
o antibolsonarismo – sentimento crescente no País, conforme atestam as mais
recentes pesquisas – tende a ser o pilar da campanha dos candidatos de
oposição. É tentador, portanto, oferecer aos eleitores um nome que se apresente
como o oposto absoluto do presidente e de tudo o que ele representa.
Pode
até servir para ganhar a eleição, mas tal projeto nada diz sobre o futuro do
País. Corre-se o risco de repetir o que fez o próprio Bolsonaro, que nos
palanques se apresentou como a encarnação do antipetismo e, uma vez no poder,
pelo menos até este momento, limitou-se a destruir o que havia, sem erguer
quase nada que prestasse no lugar.
É
preciso aproveitar esse raro momento de convergência política na oposição para
articular um projeto que vá além da promessa de interrupção da esbórnia
bolsonarista. Será um alívio não ter mais Bolsonaro na cadeira presidencial, é
claro, mas quem vier a ocupá-la deve ser portador de um grande entendimento
nacional para superar as condições que, em primeiro lugar, permitiram que
Bolsonaro chegasse lá. A restauração da inteligência no governo e na política é
fundamental, mas é apenas o primeiro passo da longa caminhada para reconstruir
o País.
A
árdua luta pela vida – Opinião / O Estado de S. Paulo
À
falta de insumos vitais, médicos duelam contra a morte sem paridade de armas
O crescimento vertiginoso do número de casos de covid-19 em quase todo o País – apenas Amazonas e Roraima registram queda na média móvel diária – impõe duplo grau de sofrimento aos enfermos e a seus familiares. O primeiro é o temor de não conseguir socorro num hospital. Como se isto não bastasse, uma vez admitido, o paciente não tem garantia de que receberá o tratamento adequado. Falta de tudo em muitos hospitais, desde equipamentos de proteção individual (EPIs) até cilindros de oxigênio, medicamentos para intubação e, principalmente, recursos humanos.
A
disseminação descontrolada do vírus – sobretudo a cepa de Manaus (AM), mais
contagiosa – tem revelado a faina para salvar vidas que é o dia a dia dos
profissionais de saúde em sua luta contra o patógeno. As equipes estão física e
emocionalmente esgotadas. E, privadas de insumos vitais mínimos para exercer
seu trabalho e prestar um tratamento digno aos doentes, veem-se digladiando com
a morte num duelo sem paridade de armas.
Em
muitos municípios Brasil afora, ricos ou pobres, já não há mais leitos de
enfermaria ou de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para receber não apenas os
acometidos por covid-19, mas por qualquer outra enfermidade que demande
atendimento hospitalar. Os pacientes não são sequer admitidos à entrada, tendo
de se haver com a própria sorte. Nessas cidades, médicos são obrigados pelas
circunstâncias dramáticas a tomar uma das mais difíceis decisões da profissão:
escolher quem vive e quem morre por falta de atendimento. Em outros municípios,
os sistemas público e privado de saúde operam muito próximos do limite da
capacidade. O colapso é iminente.
É
inaceitável que pacientes morram na fila de espera por atendimento, sem ao
menos terem uma chance na árdua luta por suas vidas. Já passou da hora de o
Ministério da Saúde coordenar com as Secretarias da Saúde dos Estados e
municípios e com a indústria nacional os esforços necessários para organizar
minimamente o enfrentamento da pandemia. A perversa combinação de incompetência
e veleidades políticas está matando brasileiros. Até quando? Que número de
mortos por dia será o limite “tolerável” para que medidas para dar fim a este
horror sejam tomadas?
A
precariedade dos estoques de cilindros de oxigênio e de medicamentos usados
para intubar os pacientes, como sedativos, anestésicos e bloqueadores
musculares, é particularmente alarmante. A falta de uns e de outros significa a
submissão dos doentes à extrema agonia. No dia 17 passado, o Ministério da
Saúde emitiu à indústria farmacêutica uma ordem de entrega do estoque desses
fármacos. É um total de 665,5 mil comprimidos, o que supre a necessidade do
Sistema Único de Saúde (SUS) por apenas 15 dias.
A
calamidade na saúde impõe outro enorme desafio para as equipes de terapia
intensiva. A intubação de um paciente é um procedimento altamente
especializado, de elevado grau de risco, tanto para médicos, dado o risco de
contaminação pelo vírus, como, e principalmente, para os doentes. Nem todos os
profissionais de saúde que atuam nas UTIs estão aptos a realizar a manobra.
Fazem-na na ânsia por salvar vidas.
Em
vez de tomar decisões aos sobressaltos, melhor faria o Ministério da Saúde se
planejasse a compra desses medicamentos em constante contato com os entes
federativos. “Não há problema de produção. A indústria só precisa receber a
demanda de forma clara e organizada”, disse ao Estado Reginaldo
Arcuri, presidente do Grupo FarmaBrasil.
Mas
é difícil esperar que a pasta atue de forma “clara e organizada” enquanto
houver, na prática, dois ministros da Saúde, um que ainda não saiu, outro que
ainda não entrou. Sem entendimento, não é dada à sociedade uma direção clara
das ações do governo daqui para a frente.
Como
se vê, passado um ano do início deste flagelo, o País paga o alto preço da
desídia e do negacionismo.
O
dever da CPI se impõe – Opinião / O Estado de S. Paulo
Omissão
na abertura da CPI da pandemia indicaria alheamento da realidade
Frente a tantas e tão frequentes confusões, omissões e escárnios por parte do presidente da República na pandemia de covid-19, há quem se questione até quando o País terá de suportar tal descalabro moral, cívico e administrativo. Em geral, essa pergunta traz implícita a expectativa de que, em algum momento, a população vai reagir de forma explícita e contundente contra a atuação caótica de Jair Bolsonaro.
Em
relação a esses questionamentos, é preciso lembrar que a população não precisa
sair às ruas para se manifestar contra o presidente da República, seja porque o
País vive um momento dramático em relação à pandemia – a recomendar um
cuidadoso isolamento social –, seja porque – eis a principal razão – já existe
um caminho para que a população faça valer a sua vontade: o Congresso.
É
equivocada a ideia de que o País não dispõe dos meios para enfrentar o
descalabro que é o comportamento de Jair Bolsonaro na pandemia. A Constituição
de 1988 proporcionou os instrumentos necessários, que não se restringem, como
às vezes equivocadamente se pensa, aos relacionados com o Poder Judiciário ou o
Ministério Público. O legislador constituinte atribuiu ao Poder Legislativo,
expressão máxima da representação popular no regime democrático, o dever de
fiscalizar o Poder Executivo.
Para
cumprir a contento essa incumbência, a Constituição previu, entre outros
instrumentos, a possibilidade de o Legislativo criar as comissões parlamentares
de inquérito, as CPIs. “As comissões parlamentares de inquérito, que terão
poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros
previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos
Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante
requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e
por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao
Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos
infratores”, diz o art. 58, § 3.º da Constituição.
A
CPI faz parte do aparato de defesa próprio de um regime democrático, com a
instauração de um processo investigativo levado a cabo pelos próprios
representantes da população. Tais comissões não são um teatro. Basta ver que a
Constituição lhes assegura “poderes de investigação próprios das autoridades
judiciais”.
Trata-se,
portanto, de um instrumento para investigar e, assim, atribuir
responsabilidades políticas e jurídicas a quem deu causa aos fatos apurados.
Depois de mais de um ano de pandemia de covid-19, não faltam motivos para
apurar a atuação do Palácio do Planalto. Basta pensar que, nesse período, o
País teve nada mais nada menos que quatro ministros da Saúde.
Num
Estado Democrático de Direito, há situações nas quais não basta a atuação do
Judiciário ou do Ministério Público, que não são representantes da vontade
popular e, em razão de suas competências específicas, devem se pautar por um
estrito rigor legal. É preciso que o próprio Legislativo volte sua atenção para
tais situações, de forma a dar uma resposta satisfatória à população.
Atualmente,
há na mesa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), um pedido de
abertura de CPI relativo à condução da pandemia pelo governo federal que cumpre
todos os requisitos constitucionais, assinado por 31 senadores de 11 partidos
políticos. Deixá-lo na gaveta, como se fosse algo politicamente turbulento
demais para o momento atual, não é apenas ignorar a Constituição ou ser
cúmplice com o descaso do presidente Jair Bolsonaro com a saúde e a vida da
população.
Eventual
omissão na abertura da CPI da pandemia manifestaria alheamento da realidade
humana, sanitária, social, econômica e política do País. Seria uma trapaça com
a população, vinda justamente do Legislativo, a quem compete representar de
forma plural e efetiva os anseios da população.
Na
atual situação do País, não é preciso coragem para abrir a CPI, tampouco é
necessária uma sofisticada compreensão dos deveres constitucionais do
Legislativo. Basta olhar para o povo brasileiro.
Mais infraestrutura – Opinião / Folha de S. Paulo
Congresso
aprova textos cruciais para facilitar investimento em gás e saneamento
Uma
das poucas boas notícias vindas de Brasília nos últimos dias foi o avanço da
pauta de modernização da infraestrutura. Dependem ou dependiam do Congresso
projetos que rompem com décadas de paralisia regulatória e poderão facilitar
investimentos em setores cruciais como energia, transportes, saneamento e
telecomunicações.
Na
semana passada houve dois passos importantes. O primeiro foi a aprovação final
do texto que altera as normas no
setor de gás, em um processo iniciado ainda no governo Michel Temer
(MDB).
As
novas regras visam aumentar a concorrência, removendo uma infinidade de
gargalos. A Agência Nacional de Petróleo (ANP) ganha mais poderes para regular
a comercialização e definir parâmetros nacionais para os contratos.
A
construção de gasodutos e terminais de armazenagem passa a um regime de
autorização, mais flexível que o anterior, de concessão. Haverá ainda garantias
de direito de passagem, com acesso de terceiros interessados à infraestrutura,
até aqui quase monopolizada pela Petrobras.
Também
deve ocorrer o desinvestimento por parte da Petrobras de 19 de suas 27
participações em distribuidoras estaduais de gás, parte de um acordo de conduta
celebrado em 2019 pela estatal com o Conselho Administrativo de Defesa
Econômica (Cade) e a ANP.
Por
fim, ficam limitadas as possibilidades de contratos entre empresas do mesmo
conglomerado, um ponto importante para evitar a formação de novos monopólios.
Nos próximos dois anos a agência deve avançar nas definições dos parâmetros
técnicos e concorrenciais que nortearão o mercado.
Com
as mudanças espera-se o aparecimento de novos participantes em toda a cadeia do
setor, o que vem a calhar num momento em que se espera forte crescimento da
oferta de gás nas áreas do pré-sal. O novo ambiente de mercado deve permitir
significativa redução nos custos nos próximos anos, com benefícios
principalmente para a indústria.
Outro
progresso notável foi a conclusão da
votação do marco regulatório do saneamento, em que foram mantidos
vetos presidenciais que se mostravam fundamentais para a modernização do setor.
Em
particular, manteve-se o veto à renovação sem licitação por 30 anos dos atuais
contratos de prefeituras com estatais, o que vai acelerar as novas concessões
em regime de concorrência. Há 1.160 contratos precários ou que vencem em até
cinco anos e agora se adequarão às novas regras.
São
avanços importantes que vão se acumulando para tornar o país mais atrativo para
investimentos e, no caso do saneamento, pôr fim a vergonhosas carências.
Jogada paroquial – Opinião / Folha de S. Paulo
Para
dar privilégio às igrejas, Bolsonaro estimula derrubada de seu próprio veto
No
intuito de auferir vantagens pessoais ou eleitorais, Jair Bolsonaro não
titubeia em atropelar os interesses do Estado, subvertendo atribuições
fundamentais do Poder Executivo e enfraquecendo mecanismos institucionais pelos
quais deveria zelar.
Esse
comportamento incendiário ficou mais uma vez explícito na derrubada pelo
Parlamento dos vetos
presidenciais referentes a dívidas fiscais e previdenciárias das igrejas,
cujo incentivador maior foi ninguém menos que aquele que os havia imposto.
O
despautério partiu do Congresso. Em setembro, a Câmara dos Deputados aprovou um
projeto permitindo que as igrejas deixassem de pagar a Contribuição Social sobre
o Lucro Líquido (CSLL). Como se o milagre fosse pouco, ainda as anistiou de
dívidas tributárias que somam mais de R$ 1 bilhão.
Tais
débitos relacionam-se a cobranças feitas pela Receita Federal, que nos últimos
anos identificou manobras de templos para distribuir lucros e remuneração
variável a funcionários sem o devido pagamento de tributos.
O
que já seria mais que questionável em condições normais ganha ares de escândalo
no atual estado de penúria das contas públicas.
As
igrejas, como se sabe, gozam há mais de 70 anos de imunidade constitucional
para tributos, dispositivo que impede União, estados e municípios de cobrar
impostos e contribuições que incidam sobre o patrimônio, a renda ou os serviços
promovidos por centros religiosos. Com o projeto aprovado, o Congresso ampliou
ainda mais esse rol de privilégios.
Pressionado
pelo Ministério da Economia para que vetasse a norma, Bolsonaro deu uma no
cravo e outra na ferradura.
O
mandatário seguiu a recomendação técnica, alegando que poderia terminar incorrendo
em crime de responsabilidade, por desrespeito à Lei de Diretrizes Orçamentárias
e à Lei de Responsabilidade Fiscal.
Ato
contínuo, porém, declarou que, caso fosse deputado ou senador, votaria pela
derrubada do veto quando o projeto retornasse ao Congresso.
A
jogada, paradoxal apenas na aparência, tem um sentido óbvio: permite a
Bolsonaro afagar suas bases eleitorais sem arcar com o ônus político da
decisão. Que para isso acabe corrompendo um instrumento essencial da
Presidência, destinado a evitar a promulgação de leis contrárias ao interesse
público, parece mero detalhe.
Funcionamento do teto de gastos não está garantido – Opinião / Valor Econômico
Economia
já está pagando o preço pela falta de um verdadeiro compromisso do Executivo e
do Legislativo com a agenda fiscal
Sozinho,
o teto do gastos públicos não resolve a grave situação das contas públicas, mas
é uma âncora importante até que se façam as reformas estruturais que poderão
dar solidez fiscal ao país. Sua sobrevivência, porém, estava em risco, devido
ao mau desenho na sua concepção, que deveria ser corrigido com a aprovação da
chamada PEC Emergencial. Agora, os especialistas descobrem que esse instrumento
legal também é falho.
O
teto de gastos visa a reduzir, ao longo do tempo, o gasto público como
proporção do Produto Interno Bruto (PIB), ao limitar à inflação do ano anterior
o crescimento da despesa em cada exercício. É um bom caminho para o Brasil
retomar a trajetória virtuosa de superávits primários, sem lançar mão de novos
aumentos de impostos, que chegaram a níveis muito altos para uma economia
emergente.
Mas
não pode ser entendido como o remédio que, sozinho, vai equacionar todos os
problemas fiscais. O teto de gastos deveria ser um indutor de reformas fiscais
que reduzam e tornem mais racionais as despesas públicas. Era esperado que, na
sequência, fosse aprovada uma ampla reforma da Previdência Social e
administrativa. Interesses corporativos, porém, limitaram o escopo da primeira
e adiaram a segunda indefinidamente.
Na
ausência de reformas amplas para conter os gastos obrigatórios, o teto de
gastos deveria exercer sua ação disciplinadora, por meio de suspensão de
reajustes, promoções na carreira. Não é o ideal, porque não equaciona as
despesas de forma racional, cortando excessos e reforçando onde é necessário.
De qualquer forma, cumprem seu papel. Mas, do jeito que foi desenhado teto de
gastos, os gatilhos para adotar essas medidas não podiam ser acionados pelo
governo, porque eles dependiam justamente de as despesas crescerem além do limite.
Criou-se
uma situação em que as despesas obrigatórias seguem crescendo, com a compressão
das despesas discricionárias. Até que chega um momento em que o espaço no
Orçamento para as despesas discricionárias é tão pequeno que leva à paralisia
de serviços do governo à população, o chamado “shutdown”. Justamente para
resolver essa deficiência que foi desenhada a PEC Emergencial, promulgada como
emenda constitucional 109. O princípio básico é que os gatilhos para segurar
gastos obrigatórios sejam acionados antes de comprimir ao limite os gastos
discricionários. Assim, se evita o “shutdown” do governo
A
fórmula aprovada na PEC Emergencial aciona os gatilhos quando a despesa
obrigatória chega a 95% das despesas totais. Muitos especialistas já vinham
criticando esse percentual por ser muito elevado, porque na conta deles só
seria ultrapassado em 2024 ou 2025. Agora, desconfia-se que, com um percentual
tão alto de 95%, a regra não impede o “shutdown”. É o que mostra coluna do
repórter especial do Valor Ribamar Oliveira (18/3).
O
ponto fundamental é que, com o gatilho acionado quando a despesa obrigatória
chegar a 95% do total, os recursos para os gastos discricionários já deverão
estar abaixo do necessário para manter os serviços essenciais do governo à
população. Foi por esse motivo que a equipe técnica da área econômica havia
proposto um percentual de 94%. Mas houve uma decisão política do Palácio do
Planalto pelos 95%.
As
razões para a mudança ainda são obscuras. Mas sabe-se que, com um percentual de
94%, eram grandes as chances de serem acionados os gatilhos do teto de gastos
em 2022. Ou seja, coincidência ou não, evita-se uma desagradável contenção de
despesas justamente no ano eleitoral
O
resumo é que a emenda constitucional é, aparentemente, inócua para resolver o
problema a que se propôs. Esse é mais um ataque à credibilidade da âncora que,
bem ou mal, tem segurando a tão questionada credibilidade das contas fiscais.
Soma-se a outras más notícias na agenda econômica do governo, como a
substituição de presidentes de estatais e a intromissão em assuntos internos de
sua gestão, num ambiente já de poucos progressos na agenda liberal, como
privatizações e abertura comercial.
A
economia já está pagando o preço pela falta de um verdadeiro compromisso do
Executivo e do Legislativo com a agenda fiscal, com a alta dos prêmios de risco
país, a forte depreciação da moeda e as pressões inflacionárias, que empurraram
o Banco Central a subir os juros na semana passada.
OCDE de olho no retrocesso do Brasil de Bolsonaro – Opinião / O Globo
Enquanto o Brasil tenta se converter em membro pleno da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o organismo está de olho no retrocesso do governo Jair Bolsonaro no combate à corrupção. Também acaba de fazer uma análise das disfunções do Judiciário brasileiro e de seus efeitos negativos na economia. Não são notícias animadoras para aquela que prometia ser uma das únicas conquistas da política externa bolsonarista.
Pela
primeira vez em quase 30 anos, o Grupo de Trabalho Anti-Corrupção da OCDE
decidiu monitorar a corrupção brasileira por meio de um subgrupo formado em
dezembro por Estados Unidos, Itália e Noruega. As recomendações anteriores ao
Brasil nesse campo não foram implementadas e, como não houve consenso sobre
adotar medidas mais duras contra o país, decidiu-se criar esse inédito subgrupo
para acompanhar a situação.
Enquanto
os diplomatas devem estar debruçados sobre o naufrágio da Operação Lava-Jato ou
discutindo a melhor tradução para a palavra “rachadinha”, no campo acadêmico,
pesquisadores da OCDE acabam de divulgar uma avaliação nada abonadora do
Judiciário brasileiro, não por acaso o ramo do governo essencial para o combate
aos corruptos.
Nossa
Justiça, diz o estudo, se notabiliza pelo tamanho gigantesco, pelo emaranhado
de leis confusas e pela lentidão nas decisões. As distorções são conhecidas, e
já houve mudanças, como a criação, em 2004, do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), órgão de planejamento e acompanhamento administrativo dos tribunais.
Mesmo assim, o estudo conclui que o Brasil precisa tratar da baixa eficiência
do Judiciário para ajudar não apenas no combate à corrupção, mas sobretudo no
crescimento econômico.
As
mazelas do Judiciário, dizem os economistas Jens Matthias Arnold e Robert
Grundke, são tão prejudiciais aos negócios quanto a falta de integração do país
ao mundo, o complexo sistema tributário e os gargalos na infraestrutura. A
demora na tramitação de processos é um dos obstáculos que apontam. Nas áreas
civil e comercial, são necessários 900 dias para concluir um processo na
primeira instância brasileira. Na Alemanha, o julgamento é feito em 200 dias,
na Holanda, em 100. As empresas enfrentam aqui, segundo os autores,
“significativa heterogeneidade em decisões judiciais”, causa de insegurança
jurídica e desincentivo aos investimentos.
O
contribuinte gasta muito com um Judiciário de baixa produtividade. Em 2018, o
custo do Judiciário representava quase 1,4% do PIB e tinha uma taxa de
resolução de casos de 30%. Na Noruega, o custo da Justiça era de pouco mais de
0,1% do PIB, e os tribunais concluíam 70% dos processos.
O
Judiciário brasileiro teria de gastar proporcionalmente mais em tecnologia e
comunicação. Mas quase 80% do Orçamento da Justiça se destinam a pessoal,
incluindo pensionistas. A média nos países da OCDE é de 65%, portanto sobram
mais recursos para a modernização tecnológica. No Brasil, eles não chegam a 10%
das despesas.
Soma-se
a isso o excesso de leis e de regulamentação, boa parte desatualizada,
superposta e contraditória, ampliando a insegurança jurídica. O estudo não nega
melhorias, mas elas ainda são insuficientes. O excesso de leis e normas também
facilita a corrupção.
Enfim,
Supremo sepulta a odiosa tese da ‘legítima defesa da honra’ – Opinião / O Globo
Em 30 de dezembro de 1976, um crime chocou o Brasil. No cenário paradisíaco de Armação de Búzios, na Região dos Lagos, o empresário Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, disparou quatro tiros contra o rosto da namorada, a socialite Ângela Diniz — o último, quando ela já estava caída. O assassinato aconteceu na casa dos dois, na Praia dos Ossos, em meio a discussões acaloradas em que, segundo testemunhos, Ângela Diniz pediu o fim do relacionamento.
A
brutalidade já seria suficiente para causar indignação. Mas teve mais.
Defendido pelo criminalista Evandro Lins e Silva, Doca foi condenado em 1979 a
apenas dois anos de prisão (com direito a suspensão condicional da pena), sob a
tese da “legítima defesa da honra”. Ângela foi apresentada como uma mulher promíscua,
e Doca, como a verdadeira vítima. A decisão, um marco sombrio na história da
violência contra mulheres, inspirou séries de TV e gerou inúmeros movimentos e
campanhas. Em julgamento posterior, Doca foi condenado a 15 anos de prisão.
Quase
meio século depois do crime da Praia dos Ossos (e três meses depois da morte de
Doca Street, aos 86 anos), o Supremo providenciou um enterro de luxo à
“legítima defesa da honra”. Ao julgarem ação movida pelo PDT, os 11 ministros
decidiram por unanimidade que a tese não pode ser aplicada em julgamentos no
tribunal do júri como argumento de defesa em casos de feminicídio, por
contrariar princípios da Constituição.
O
relator do caso, ministro Dias Toffoli, afirmou que a tese corresponde a
recurso “desumano e cruel”, usado “para imputar às vítimas a causa de suas
próprias mortes ou lesões”, contribuindo para a naturalização da cultura da
violência contra as mulheres no Brasil.
É
certo que, nesses 44 anos, o país mudou. Foram criadas delegacias
especializadas, vieram as leis Maria da Penha (2006) e do Feminicídio (2015),
inúmeros movimentos surgiram. Ao mesmo tempo, nada mudou. Assassinatos covardes
como o de Ângela Diniz acontecem todos os dias. Basta trocar os cenários e
mudar os nomes das personagens — Cláudia Lessin, Mônica Granuzzo, Daniella
Perez, Tatiane Spitzner, Viviane Vieira do Amaral.
É
louvável a decisão do Supremo de remover o entulho anacrônico dos tribunais, de
modo a impedir que criminosos se beneficiem de brechas da lei para ficar
impunes. Mas a sociedade precisa avançar. Tanto quanto punir os autores de
feminicídio, é essencial impedir que esses crimes aconteçam com a regularidade
de um folhetim. Mulheres são assassinadas mesmo sob medidas protetivas, como
foi o caso da juíza Viviane do Amaral, morta na frente das filhas.
Há que criar políticas públicas — e as patrulhas Maria da Penha são um bom exemplo — para estancar a tragédia que nos avilta. Não há espaço numa sociedade civilizada para esse tipo de comportamento ignóbil. Como se argumentava numa época em que as redes sociais eram os muros pichados da cidade, “quem ama não mata”. E, se mata, tem que pagar pelo crime.
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