Tanto
falamos numa frente para combater Bolsonaro, centro, centro-direita,
centro-esquerda, empurra para lá, empurra um pouco para cá, tentamos encher com
nossos desejos e preconceitos o ônibus que nos levaria para longe dessa
grotesca versão de governo.
Olhando
o cotidiano, observo que essa frente até mais ampla e generosa do que
projetamos acabou se formando em torno do tema crucial: a rejeição ao papel de
Bolsonaro na pandemia.
Mesmo
os presidentes do Senado e da Câmara, eleitos com o apoio de Bolsonaro, tentam
se distanciar dele quando o tema é a Covid-19.
De
certa maneira, a maioria compreendeu Bolsonaro: 56% dos entrevistados na
pesquisa do Datafolha o consideram incapaz para dirigir o país.
Isso pode ser uma boa notícia para as eleições. Mas seria um erro monumental pensar em eleições quando temos diante de nós um caminho complexo e tortuoso como o combate à pandemia.
O
líder do governo disse, no auge dos recordes letais da pandemia no Brasil, que
a situação do país é “até confortável”. É uma declaração estapafúrdia, que os
fatos esmagam. Noto, entretanto, que mencionou na mesma fala a existência da
oposição a Bolsonaro.
Ocorreu-me
pensar que o líder considera que a oposição verbal a Bolsonaro é também algo
que está dentro da zona de conforto.
A
existência de uma pandemia devastadora e de uma frente ampla contra Bolsonaro
pede mais que uma oposição verbal. Ele se incomoda quando o chamam de
“genocida” ou mesmo de “pequi roído”.
Certamente,
vai se incomodar mais quando essa frente ampla multiplicar suas ações em todos
os níveis do combate à pandemia.
Quando
escrevi que os governadores e a sociedade deveriam avançar no caso das vacinas,
alguns acharam que não havia salvação fora do poder federal. Felizmente, a realidade
mostrou que é possível agir. Governadores do Nordeste conseguiram fechar
negócio para comprar 37 milhões de doses da Sputnik V. Na verdade, a realidade
já mostrara antes disso que foi a iniciativa de São Paulo que garantiu afinal a
maior parte das vacinas que imunizam neste momento cerca de 5% da população.
Ficou
evidente também que o governo não tem o monopólio das relações externas. Na
verdade, seria um absurdo colocá-las nas mãos de um chanceler extremista como
Ernesto Araújo.
O
caminho diplomático não se resume a comprar vacinas. Os governadores tentam
convencer a OMS da urgência da remessa da compra de três milhões de doses, já
efetuada junto ao Covax, consórcio que busca democratizar a venda de vacinas.
Lula
propôs que Biden se encontre com outros líderes mundiais e discuta esse ponto
central das vacinas no mundo. Aliás, Biden já participou de um encontro para
garantir vacinas a alguns países asiáticos.
Os
Estados Unidos têm 30 milhões de doses da vacina de Oxford estocadas em Ohio.
Ela ainda não foi aprovada pelas autoridades sanitárias de lá. Parte será doada
ao México.
A
vacina de Oxford seria útil aqui. Poderíamos comprá-la, se for o caso, ou mesmo
pagar com as doses que a Fiocruz produzirá no segundo semestre. Essas manobras
diplomáticas não são simples. Mas os governadores poderiam tentar.
Tudo
o que fizermos agora, seja no nível diplomático, seja no da própria sociedade,
é um ato dessa frente ampla que se formou não apenas contra a Covid-19, mas
contra seu principal aliado objetivo: Jair Bolsonaro.
Não
importa o que aconteça lá na frente. Quando tivermos eleições, certamente a
frente ampla terá amadurecido não só a ponto de ajustar as contas com Bolsonaro
na Justiça, mas também para redefini-lo como o adversário comum.
A realidade nos trouxe uma tragédia que pode nos custar meio milhão de mortos. Mas, depois dela, saberemos dizer: nunca mais.
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