O
legislador constituinte escolheu juízes e procuradores para controlar o
presidente
Tem
havido uma crescente insatisfação com uma suposta atuação excessivamente política
do sistema de justiça brasileiro, em especial da sua Suprema Corte e do Ministério Público. É como se essas
organizações de controle estivessem extrapolando suas funções estabelecidas
pela Constituição. O descontentamento é tamanho que já voltam a aparecer
movimentos de pedidos de impeachment de ministros do STF ou processos
disciplinares contra procuradores da República. Juízes e procuradores nunca
estiveram tanto em evidência ou foram tão criticados...
Mas,
é imprescindível lembrar que juízes e membros do Ministério Público se tornaram
influentes na vida política não por consequência de usurpações unilaterais de
poderes.
Esses poderes foram estrategicamente delegados pelo próprio legislador constituinte. A Constituição de 1988 consolidou a visão de que a atuação de juízes e promotores deveria ser autônoma e independente da vontade política.
Legisladores constituintes poderiam ter escrito regras e procedimentos específicos e detalhados com o objetivo de gerenciar os microfundamentos da atuação de juízes e promotores, diminuindo assim a sua autonomia e discricionariedade. Ao invés disso, preferiram escrever regras vagas e princípios gerais, deixando procedimentos sem uma clara especificação, delegando grande autoridade de ação e decisão para esses atores.
Ao
transferir ampla discricionariedade a juízes/promotores, os legisladores sabiam
que estavam correndo riscos de que esse poder pudesse reverter contra os
interesses dos próprios parlamentares. Mas, naquele momento, valia a pena à
sociedade, ainda traumatizada pelo recente regime autoritário, pagar esse
preço, pois existia um risco muito maior a ser enfrentado: a possibilidade de
mau uso, e indiscriminado, de poderes pelo Executivo.
A
saída encontrada para esse dilema foi proteger os cidadãos, com o máximo de
garantias possíveis, contra um presidente dotado de uma “caixa de ferramentas”
de governo capaz de fazer valer suas preferências. Políticos são mais propensos
a preferir estatutos de baixa discricionariedade para juízes e promotores
quando o ambiente de monitoramento legislativo é suficientemente forte, já que
eles preferem confiar em mecanismos ex post menos onerosos. Uma espécie de
efeito substitutivo.
Portanto,
quando o Executivo se torna constitucionalmente poderoso através de um processo
de delegação do próprio Legislativo, é de se esperar o desenvolvimento de
sofisticadas redes de instituições de controle com a capacidade de restringir
potenciais condutas desviantes do chefe do Executivo.
A
última barreira para a ampla dominância do presidente passaram a ser as
instituições judiciais, que assim assumiram um papel de protagonismo na
política. A Lava Jato, a investigação de familiares do atual presidente, ou
mesmo a atuação individual e, em muitos casos, inconsistente de juízes da
Suprema Corte representa a parte visível e mais impactante dessa escolha
legislativa.
Como
tudo na vida, os sistemas políticos são moldados a partir de escolhas. É sempre
um cálculo de perdas e ganhos que a sociedade está disposta a pagar e pretende
auferir. Não existe solução ótima. O que muda com o tempo é a avaliação dos prós
e contras e o entendimento dos riscos.
Os
movimentos e tentativas recentes de redução da discricionariedade política de
juízes e procuradores podem ter o efeito de não apenas restringir a atuação
destes, mas também o de potencialmente colocar a sociedade em situação pior que
a atual, definida a partir da escolha do legislador constituinte de 1988.
Afinal, com uma coleira fraca o “cachorro grande” pode causar estragos ainda
maiores.
*PROFESSOR TITULAR DA, FGV EBAPE (RIO)
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