domingo, 23 de maio de 2021

Vinicius Torres Freire – Lula, Bolsonaro e o futuro do arrocho

- Folha de S. Paulo

Epidemia adiou conflito grave sobre gasto público; campanha antecipada vai revivê-lo

A epidemia suspendeu a discussão séria do que fazer com a dívida e o gasto do governo. “Séria” no sentido de decisões, consequências práticas. Uma campanha eleitoral antecipada logo vai ressuscitar esse debate. Quanto mais provável for um confronto entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro, mais precoce será a campanha e mais evanescente será o fantasma da “terceira via”.

As consequências do que cada um disser ou fizer aparecerão mais cedo também. Como a água suja socioeconômica está pelo nariz, qualquer marola será tsunami. Seja lá o que a leitora pense a respeito de como financiar um governo muito endividado, os donos do dinheiro grosso têm ideias claras do que deve ser feito e cobram o seu preço em taxas de juro e de câmbio.

Querem ao menos a perspectiva de que a dívida pública fique mais ou menos estável nos próximos anos, até 2026, por aí. Para tanto, o país teria de crescer uns 2,5% ao ano, a taxa básica real de juros não pode ir muito além de 3% ao ano (isto é, Selic a 6,5%, com inflação na meta) e o teto de gastos deve ser mantido onde está, para ficar no mínimo essencial. É uma perspectiva otimista.

O que isso implica em termos de arrocho? Que salário mínimo, benefícios do INSS e servidores não terão aumento real (além da inflação). Que o investimento público (casa popular, estrada etc.) continuará a minguar, assim como o dinheiro de pesquisa e universidades. Dificilmente haverá fundos para aumentar a despesa em saúde, por cabeça, ou pagar um programa de renda mínima.

Observem que deixamos de lado a conversa sobre o que fazer de um país cada vez mais ocupado por tráfico ou milícias, que verá precarização do trabalho ainda mais rápida e que não tem um grande eixo visível de investimento privado.

Bolsonaro não terá quase nada a mostrar na campanha além de propaganda reacionária, antipetismo, auxílios da epidemia e um pacotinho de reformas liberais, para o que povo liga pouco. Pode ser que o reacionarismo, promessas golpistas e as loucuras que propagandeou na epidemia bastem para levá-lo ao segundo turno —por ora, lhe garantem menos 25% dos votos.

Pode ser que queira mais, assim como o centrão que ora está em sua canoa. Os donos do dinheiro se perguntam se, na campanha, o governo vai inventar alguma gambiarra de gasto ou “meter a mão” em preços ou um plano demagógico qualquer que envolva dinheiro público e sirva para confrontar o “social” Lula.

Como desde sempre, vão querer que Lula beije a cruz fiscal-liberal. Desde já, Lula tenta compor aliança ampla, mas não se sabe quão cedo vai explicitar seus compromissos. Menos ainda se sabe como vai fazer com que tais arranjos sejam compatíveis com alguma promessa de mudança.

Quanto mais maluquice propuserem, maior o tumulto, antes e depois da eleição. Estando a dívida em 90% do PIB e muito mais gente na miséria, é fácil promover um desastre. É possível mexer no teto de gastos sem que a casa caia. Para fazê-lo, é até possível contar com certa mudança de ares econômicos do mundo.

Mudança maior depende de alta de impostos e remanejamento de gastos (jogo com perdas grandes e poucos ganhos a distribuir). Será preciso convencer povo e credores de que um arranjo alternativo é possível, ao mesmo tempo.

É como dar cambalhotas no fio da navalha, risco ainda maior em um país em que parte relevante da elite não se importa de tocar o terror, aliada a familicianos e seitas da religião do dinheiro, para evitar um tico mais de imposto e obter licença para matar no mundo do trabalho, do ambiente ou na rua mesmo.

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