- O Estado de S. Paulo
Quando examinamos os conselheiros do nosso
príncipe, um nome vem à mente: Rasputin
Raros governos na história política mundial
agiram sem conselheiros. Embora já na Ilíada o astuto Ulisses recomende o poder
de um só, a liderança exige partilhas. Reunir num dirigente decisões
estratégicas traz inconvenientes só remediados pela tirania. Escritos clássicos
evidenciam a relevância dos ministros, secretários e similares na ordem
estatal. Os conselheiros podem agir às claras ou exercer seu ofício nas
sombras. Não raro surgem conflitos entre poderosos e auxiliares, o que traz
desgraças aos dois.
Platão exemplifica a tragédia do aconselhamento. Dionísio, tirano da Sicília, pediu-lhe ajuda para definir uma administração justa e verdadeira. O autor da República caiu na armadilha, ensinou ao hospedeiro verdades insuportáveis. Como “prêmio” ele foi vendido como escravo. A Carta Sétima platônica narra as desventuras do infeliz conselheiro. Maquiavel entra no rol dos sapientes em desgraça após cumprir as missões secretas da república. É imensa a lista dos desenganos vividos nos palácios.
Um ajudante governamental bem-sucedido e
que agiu nas sombras é o famoso Père Joseph, alma gêmea do cardeal Richelieu.
Ele auxiliou na tarefa de edificar o moderno Estado francês, modelo dos Estados
europeus desde então. Na política internacional e nos assuntos internos nota-se
o mencionado clérigo agindo como eminência oculta.
Aconselhar o dirigente máximo de uma
coletividade política – inserida em territórios controlados por outras
soberanias – exige treino, ciência, prudência. O Père Joseph, religioso
erudito, desde a mais tenra idade aprendeu as bases do saber. Aos 16 anos ele
dominava a língua italiana e o espanhol, o latim e o grego. Era também
capacitado em direito e matemáticas superiores, lia o hebreu, nas artes
militares praticava tiro e equitação. Ao conhecer Richelieu o frade estava a
par da política internacional e impulsionou opções diplomáticas da França. “O
Père Joseph, não apenas cumpriu brilhantemente as missões das quais foi
encarregado, mas ele também sabia, único entre todos, apresentar críticas que
sempre impressionaram Richelieu. Este último com frequência levava em conta
seus alertas” (Carl J. Burckhardt, Richelieu).
Gabriel Naudé reserva o capítulo quinto de
sua obra sobre os golpes de Estado à escolha de auxiliares pelo governante.
Fundador de instituições sólidas na construção do Estado francês, como a
Biblioteca Mazarino, ele recomenda opção por conselheiros prudentes, amorosos
da coisa pública, de espírito agudo.
No Brasil, personagens ilustres cumpriram o
papel de aconselhar o príncipe. De José Bonifácio a San Tiago Dantas, a
política governamental sempre teve pessoas sábias que desenharam saídas para os
dilemas pátrios. Nem sempre tais ajudantes demonstraram espírito democrático.
Francisco Campos e Golbery do Couto e Silva exibiam perfis tirânicos. Mas sua
presença nos palácios definiu rotas para o Estado.
Chegamos aos nossos dias. Nos Estados
Unidos, Donald Trump cerca-se de conselheiros tão ignaros quanto ele. Nas
sombras, Bannon e seus manejos internacionais pioram a política estadunidense,
interna ou externa. Na Itália, Berlusconi acolhe uma intelectualidade cuja
marca principal é a ideologia autoritária. Na França, Sarkosy vê-se rodeado de
auxiliares opostos a tudo o que significa a antiga república. Angela Merkel
brilha – estrela solitária – numa constelação governamental obscura e
obscurantista. A União Europeia, assim, nem sequer conseguiu definir uma sólida
Constituição.
No Brasil a Presidência da República é
aconselhada por um gabinete oculto, com várias atribuições. Nenhuma delas
integra a lista das mais relevantes missões estatais. Na política externa, o
grupo é liderado por Eduardo Bolsonaro. A experiência demonstrada por ele é
interessante: trabalhou em lanchonete nos Estados Unidos. Mas comanda a
Comissão de Relações Internacionais da Câmara dos Deputados. No campo da saúde
pública e das comunicações, temos outro membro da família, Carlos Bolsonaro.
Pelos testemunhos na CPI da Covid, ele foi ouvido na recusa de vacinas, na
administração de fármacos, etc. Não foi publicado até hoje o diploma médico do
referido príncipe. Nos tratos com o Congresso o conselheiro é Flávio Bolsonaro.
Sua competência não impediu a abertura da referida CPI e não consegue esconder
procedimentos contrários a todo o direito público, como o escândalo tratoral do
orçamento secreto. Sim, o gabinete oculto encarregado de espalhar fake news também opera no
interior do Planalto.
Quando examinamos tais conselheiros
semiocultos do nosso príncipe, um só nome vem à mente com celeridade: Rasputin.
Ao usar a fé da imperatriz e cooptar com promessas de poder parte da corte
russa, aquela pessoa apressou a queda do regime imperial, tantos foram os
absurdos praticados pela casa reinante sob seus auspícios.
Lida, a História política é cheia de
exemplos quando se trata dos riscos no aconselhamento do governante. Mas quem
hoje pratica a leitura no Palácio do Planalto?
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de estado e outros estados da Razão’ (Perspectiva)
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