domingo, 23 de maio de 2021

Bernardo Mello Franco - Crônica da reconciliação

- O Globo

Hoje pode soar estranho, mas Fernando Henrique Cardoso quase se filiou ao PT. Aconteceu no fim da ditadura, quando trabalhadores do ABC paulista começaram a organizar um partido. Intelectuais como Antonio Candido, Sergio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes embarcaram no projeto. O sociólogo FH ficou indeciso.

“Tive muitas dúvidas sobre que direção tomar. Se apoiar o novo partido que estava se desenhando sob a batuta do Lula, o Partido dos Trabalhadores, se permanecer no MDB ou se criar algo mais homogêneo”, conta Fernando Henrique no recém-lançado “Um intelectual na política: Memórias”.

“Muitos dos meus amigos, a maioria, foi para o PT”, prossegue FH. Ele decidiu não ir à fundação da sigla, em 1980. Logo começaria a se distanciar dos petistas, que considerava “agressivos”. “Até a criação do PT, eu ainda acreditava na possibilidade de uma frente mais ampla. Depois ficou difícil, o PT era intransigente: crê ou morre”, justifica.

O sociólogo e o operário se conheceram antes da política, quando pesquisadores do Cebrap estudavam o novo sindicalismo. Em 1978, FH foi a São Bernardo do Campo em busca de apoio para se candidatar ao Senado. Lula o recebeu numa salinha esfumaçada do Sindicato dos Metalúrgicos.

“Eu, que não sou nem de bebida nem de cigarro, não estava à vontade”, confessa FH. Apesar das diferenças, Lula topou ajudá-lo. “Ele ia aos comícios e falava. Sempre falou bem. Cativava”, elogia o ex-presidente, que se elegeu suplente de Franco Montoro.

Em 1989, o sociólogo retribuiria a ajuda do operário. No segundo turno da corrida presidencial, ele e Mario Covas subiram no palanque petista. Foram vaiados. “Nosso apoio ao Lula era necessário, mas não amado”, admite.

Na eleição seguinte, em 1994, o petista despontava como favorito. FH entrou no páreo para atrapalhar seus planos. “Lula estava crescendo e alguém tinha que enfrentá-lo. Foi por isso que aceitei ser candidato”, reconhece. Impulsionado pelo Plano Real, o tucano chegou ao Planalto. Oito anos depois, passaria a faixa ao velho conhecido.

“Estávamos bastante emocionados. Terminada a cerimônia, fomos para dentro do palácio e Lula me acompanhou até o elevador. Ele encostou a face dele na minha e disse: ‘Você deixa aqui um amigo’. Não foi o que aconteceu”, escreve FH.

A partir dali, a distância entre os dois só aumentou. No poder, Lula acusou o tucano de ter deixado uma “herança maldita”. Mais tarde, o petista foi preso pela Lava-Jato e esperou uma solidariedade que não veio. “Fernando Henrique me conhece, sabe que não sou corrupto”, queixou-se, no ano passado.

FH concluiu o livro em março, quando uma reconciliação com o sucessor parecia impossível. Dois meses depois, os ex-presidentes voltaram a se encontrar. Uniram-se com o objetivo de derrotar Jair Bolsonaro, inimigo do projeto democrático que ajudaram a construir.

A foto de FH e Lula aponta o caminho para uma frente contra o autoritarismo em 2022. Na sexta-feira, aliados acusaram o ex-presidente de fortalecer quem o criticou. Às vésperas dos 90 anos, ele explica que a política tem dessas coisas. “Não tomo nada em termos pessoais. Isso envelhece a gente. Não vale a pena”, afirma.

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