terça-feira, 8 de junho de 2021

Pedro Cafardo - Do bom gasto público à volta do ‘velho normal’

- Valor Econômico

Experiência bem-sucedida de 2020 não foi suficiente para amolecer ortodoxia brasileira

A pandemia perde força lá fora. Aqui, o país está assustado com a possível chegada de uma terceira onda da covid-19. Quem tem fé reza, e quem não tem torce para que ela não venha, sem poder esperar por empenho efetivo da autoridade federal, que cometeu inúmeros equívocos no enfrentamento da doença. Estimativas indicam que esses erros e omissões tenham sido responsáveis por 70 mil das mais de 470 mil mortes.

A esta altura, rezando ou torcendo, aqueles que lidam com economia já têm material para avaliações conclusivas sobre o impacto real da pandemia na economia e o efeito das medidas emergenciais adotadas em 2020.

Diferentemente de outros economistas heterodoxos, que consideram a ação estatal fraca e inconsistente, o professor Luiz Fernando de Paula, da UFRJ, sustenta que as iniciativas tomadas em 2020, após pressões da sociedade, tiveram forte efeito contracíclico na economia. Houve redução de pobreza e desigualdade, ainda que as autoridades tenham agido sem estratégia coordenada.

No paper “A crise do coronavírus e as políticas contracíclicas no Brasil”, que circula nos meios acadêmicos, Fernando de Paula reúne dados para sustentar essa afirmação. A reação inicial do ministro da Economia, Paulo Guedes, foi lamentável, mantendo coerência com sua formação na velha Escola de Chicago e argumentando que as reformas seriam a melhor resposta à crise sanitária. Tomou medidas iniciais claramente insuficientes. Depois, acuado pelo Congresso, aceitou o auxílio emergencial e tomou outras medidas que totalizaram injeção de R$ 415 bilhões na economia. A maior parte, R$ 230 bilhões, foi aplicada no auxílio a pessoas vulneráveis (55%), seguido do auxílio a Estados e municípios (19%), à saúde pública (11%) e à manutenção do emprego e renda (8%).

O impacto inicial da pandemia foi assustador. O nível de utilização da capacidade produtiva da indústria no país, que já era baixo (menos de 80%), caiu para 65% em abril de 2020. Muitos desempregados decidiram parar de procurar trabalho e, assim, a soma de desocupados e desalentados atingiu 20% da população economicamente ativa.

O choque da atividade econômica transmitiu-se para o sistema financeiro, com falta de liquidez, redução de fontes de recursos externos, saques de linhas de crédito abertas e processos de repactuação de operações de crédito.

Alguns dados mostram o efeito do auxílio emergencial. A renda média efetiva dos 10% mais pobres do país teve aumento de 76%. No segundo décimo mais pobre, a alta foi de 32%, números que indicam um forte impacto distributivo. Nos segmentos de renda mais alta, o ganho declina à medida que a renda aumenta. Além da diminuição da desigualdade, houve redução da pobreza, de 23,7% em maio de 2020 para 18,4% em agosto. Nesse período, a pobreza extrema caiu de 4,18% para 2,29%

Citando Sanches et al (2021), Fernando de Paula observa que, com gasto equivalente a 4,1% do PIB, o auxílio emergencial foi responsável por evitar que a economia tivesse recessão de 8,4% a 14,8% no ano passado (a queda foi de 4,1%). O consumo das famílias, sem o benefício, poderia ter caído entre 11% e 14,7%, em vez de 6%.

Os efeitos dessas medidas e de outras que evitaram o racionamento do crédito são hoje admitidos por ortodoxos e heterodoxos e comemorados pelo mercado financeiro. O PIB cresceu 1,2% no primeiro trimestre e a previsão de expansão em 2021 supera 4%.

Cloroquinas econômicas

O problema é que a experiência bem-sucedida de 2020 não foi suficiente para amolecer a ortodoxia brasileira. Volta-se a apostar nos remédios de austeridade e retração do Estado, cloroquinas econômicas neste momento de contração. Acredita-se na tese da “fada da confiança”, diz Fernando de Paula, segundo a qual as políticas liberais destravam o espírito empresarial das amarras do Estado.

A agenda neoliberal, diz o economista, não seguiu em frente em 2020, uma vez que o governo aumentou os gastos públicos e isso atenuou a recessão. Abandonou-se a teoria de que o ajuste fiscal feito com cortes de despesas públicas aumenta a confiança dos agentes, estimula os gastos privados em consumo e investimento e, consequentemente, promove crescimento econômico.

Agora, embora a pandemia continue, o governo explicitamente retoma a agenda ortodoxa. Além de demorar para aprovar um novo e insuficiente auxílio emergencial, enviou ao Congresso uma lista de propostas prioritárias que confirmam a aposta nessa agenda liberal. Entre elas, a autonomia do Banco Central (já aprovada); a nova Lei Cambial, que poderá permitir a abertura do contas em dólar no país; a PEC Emergencial, que restringe gastos públicos de União, Estados e municípios. E está mantida a fé no teto de gastos.

A retomada neoliberal está em linha com a estratégia que vinha sendo adotada no país antes da pandemia, que o economista chama de “Thatcherismo Tupiniquim”. Segundo ele, porém, essa política diverge daquela que vem sendo considerada necessária, mundo afora, para a recuperação da crise, recomendada inclusive pelo FMI. Em seu “Fiscal Monitor”, o Fundo pressupõe “lockdowns” nos momentos mais agudos da pandemia e vacinação, dois pontos sabotados pelo governo. Um ponto central das recomendações é a necessidade da expansão fiscal e do investimento público em países avançados e emergentes. A sugestão é que os governos recorram também à emissão de dívida e à tributação de ricos.

Em um primeiro momento, o foco sugerido é a transferência de renda para os setores mais vulneráveis de pessoas e empresas. Em seguida, propõe o Fundo, o investimento público deve dar prioridade à melhoria da rede de saúde, à expansão da infraestrutura digital e à transição para um modelo de desenvolvimento mais sustentável, tendo em vista o aquecimento global e a proteção ambiental.

Está evidente, portanto, segundo Fernando de Paula, o descompasso entre a estratégia do governo Bolsonaro para a recuperação da crise e a dos demais países e instituições internacionais. A tendência é que a tentativa de volta ao “velho normal”, com a agenda da austeridade, represente entrave para a recuperação da atividade que se iniciou com as medidas não ortodoxas do ano passado.

 

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