terça-feira, 8 de junho de 2021

João Pinheiro da Fonseca - Entre o delírio e o golpe

- Folha de S. Paulo

Bolsonarismo é um sonho febril das redes que tomou de assalto a realidade

Entre os pertences de Allan dos Santos, o blogueiro pró-Bolsonaro que está sendo investigado por possíveis manifestações golpistas e recebimento de verbas públicas, encontrou-se uma singela notinha escrita à mão. Diz ela: “Objetivo: materializar a ira popular contra os governadores/prefeitos; fim intermediário: saiam às ruas; fim último: derrubar os governadores/prefeitos”.

O próprio presidente não escondeu intenções ainda mais violentas na famigerada reunião ministerial de 22 abril.

Entre tantos disparates, expressou seu desejo de que a população se armasse para resistir às medidas de isolamento social vindas de prefeitos e governadores.

Ninguém tem a menor dúvida de que, se perder nas urnas, Bolsonaro negará o resultado e tentará causar tumulto. É o que ele e seus asseclas já vêm tentando fazer. Ontem mesmo a deputada Bia Kicis afirmou que a eleição de 2022 só será confiável se tiver voto impresso em 100% das urnas. É tecnicamente impossível viabilizar essa mudança eleitoral em tempo hábil para as próximas eleições. Logo…

Há uma desconexão, a princípio gritante, entre os objetivos e os meios do blogueiro. Ele quer derrubar governos, mas tudo que tem à mão são suas contas de redes sociais e sua imaginação fértil para criar notícias e análises. Não será um delírio de grandeza?

O bolsonarismo é um sonho febril das redes que tomou de assalto a realidade física. Ele é, sim, delirante em suas afirmações e teorias da conspiração (a mais recente: o isolamento social é a antessala do
comunismo). Por outro, vivemos em tempos em que o antes impensável se tornou viável.

A ideia básica é: se uma parcela grande o bastante e barulhenta o bastante for fanatizada ao ponto de querer romper a ordem institucional, algo pode acontecer. Se essa população estiver armada, melhor.

Não está claro como nada disso resultaria na derrubada do poder em Brasília, impedindo, por exemplo, uma transição pacífica em caso de derrota de Bolsonaro.

Há um passo crucial aí que permanece desconhecido. A invasão do Capitólio americano deixou isso claro: não havia caminho possível entre aquele ataque de loucos —que, não obstante, colocou em risco a vida de congressistas— e uma real tomada do poder. Claro que Trump não contava com a ajudinha de forças policiais espalhadas pelo país, o que poderia virar o jogo. Quem sabe. Se Modi consegue na Índia, por que não aqui?

Bolsonaro segue seu jogo. Afirmou, ontem, que dados do TCU mostram que as vítimas de Covid-19 no Brasil são na verdade a metade do número oficial. Sua Secretaria de Comunicação alegou ainda que a reportagem da revista The Economist sobre o Brasil faz a apologia ao homicídio do presidente. Ruídos e mentiras que servem apenas para turvar as águas. Semana que vem, quando tiverem sido esquecidas, novas serão inventadas.

As redes sociais permitiram que a comunicação humana não passe mais pelos canais tradicionais da imprensa ou da universidade. Colocou todos em pé de igualdade. O bolsonarismo soube se aproveitar: você sabe tanto quanto qualquer um dos supostos especialistas da imprensa ou da ciência, que na verdade só querem te enganar. A prova é que eles não estão a favor do seu lado político custe o que custar.

Há muitas críticas justificáveis a ser feitas aos grandes jornais e grupos de comunicação. O motivo dos ataques, contudo, não são suas falhas, e sim sua virtude: trazer alguma objetividade e base factual ao debate público.

E, no entanto, isso nunca foi tão necessário para evitar a escalada de narrativas delirantes que justificam destruir as instituições. Como fazer isso, como dar esse passo crucial, é que ainda não descobrimos.

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