O Globo
Democracia é essencialmente o regime do diálogo, da negociação, da busca do consenso, a partir da escolha do povo. É a política do debate. O problema é que há debates que engrandecem democracias e seus atores; outros apequenam. Muita gente acreditou que, ao fim da longa temporada de doença, luto e crises decorrentes da pandemia, o mundo e o Brasil, em particular, sairiam melhores, amadurecidos, fortalecidos. É verdade que organizações da sociedade civil se reaproximaram e assumiram o protagonismo em ações humanitárias de enfrentamento à Covid-19. Está claro que atribuições — à frente, saúde e assistência social — de um Estado intensamente demonizado em anos anteriores foram reconhecidas e, hoje, são cobradas. Mas, ao fim da jornada, sairemos mais exauridos que satisfeitos, mais esfarrapados que aprumados, mais famintos que saciados. Sairemos menores.
Não há como fingir que não foi devastador
perder dois, três, talvez quatro anos reiniciando debates sobre temas
superados, pacificados, resolvidos, à luz de pactos civilizatórios há muito
firmados. O Brasil sob Jair Bolsonaro e seu grupo político implodiu qualquer
traço de normalidade democrática. Hoje, gastamos tempo que não temos em
discussões que, um par de anos atrás, eram completamente irrelevantes. Quase
três décadas e meia depois de promulgada a atual Constituição, somos obrigados
a lembrar que democracia é inegociável e tem de haver harmonia e independência
entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Como numa classe de
alfabetização cidadã, temos de explicar que ofender e ameaçar ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) não é liberdade de expressão, mas ataque às
instituições.
Mais de meio milênio depois da chegada dos
colonizadores, a Justiça é chamada a decidir se o direito dos povos indígenas
sobre terras que ocupavam antes de o Brasil ser Brasil terminou com a entrada
em vigor da última Carta Magna. É disso que trata o marco temporal que o STF
volta a julgar em 1º de setembro. O mundo todo, boquiaberto, vê a Amazônia ser
derrubada e incendiada com a anuência do governo. O debate se apequena quando a
ministra da Mulher quer impor a maternidade a uma criança de 11 anos, que
engravidou de um estupro; ou determina que meninas vestem rosa, e meninos azul.
Quando a pandemia completou um ano, Ana
Paula Lisboa, amiga querida, colunista no Segundo Caderno, expressou num
encontro virtual o espanto com a polêmica brasileira sobre uso de máscara como
medida não farmacológica para conter a transmissão da Covid-19. Ela vive em
Luanda, capital angolana, há quatro anos e contou que lá máscara não é tema de
debate: “As pessoas usam”. No Brasil, um quarto da população completamente
imunizada, variante Delta do coronavírus em acelerada multiplicação, e o
presidente da República cobra do ministro da Saúde o uso facultativo da
proteção. Diariamente, repetimos que haver mais de 577 mil pessoas mortas pela
pandemia é inaceitável.
Nos dois anos e meio do atual governo,
fomos levados a explicar por que brasileiros como Elza Soares, Martinho da
Vila, Benedita da Silva, Gilberto Gil, Zezé Motta, Conceição Evaristo são
dignos de reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares. E a reagir à inclusão
do Palácio Gustavo Capanema, joia da arquitetura modernista, numa lista de
imóveis da União a ser privatizados. É cansativo lidar com gestores públicos
que não sabem a diferença entre bem imobiliário e patrimônio histórico;
desprezam a relevância da cultura, das artes, do carnaval.
Cá estamos a produzir estudos e resgatar
evidências de que flexibilizar o acesso a armas de fogo não diminuiu a
violência, aumentou. Estamos em 2021 fazendo pessoas submetidas à tortura, à
brutalidade do regime militar revisitar suas dores, exumar seus mortos para
provar que houve ditadura no Brasil de 1964 a 1985. Temos de repetir que o
Estado é laico e que Forças Armadas a ele se subordinam.
Somos impelidos a ensinar ao ministro da
Economia que pobres não podem se alimentar de sobras; inflação de 7% é jogo
perigoso para um país engolfado pelo desemprego, pela informalidade, pela fome;
52% de aumento na bandeira tarifária que onera a conta de luz é uma
barbaridade. Precismos ensinar ao titular da Educação que crianças com
deficiência têm de ir à escola, educação é direito constitucional de todos os
brasileiros, e universidade não é para poucos.
Sairemos exauridos, minúsculos. E com muito
trabalho pela frente.
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