O Estado de S. Paulo / O Globo
Não faz sentido Lula trazer Chávez para uma
conversa sobre imprensa
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
voltou nesta semana ao debate sobre “regular a mídia”. Entrou no assunto, como
de praxe, de forma ambígua, confusa, misturando temas. Lula é também o favorito
a chegar ao segundo turno contra o atual presidente, Jair Bolsonaro. Como
Bolsonaro é golpista e quer ver a democracia pelas costas, faria bem ao Brasil
que Lula esclarecesse quais são seus planos, suas ideias, o que quer dizer
exatamente por “regular a mídia”.
Na quarta-feira, em discurso no Rio Grande do Norte, deixou claro que essa regulação é uma de suas prioridades. Numa entrevista ao Jornal da Bahia, afirmou que deseja o modelo britânico, não o cubano ou o chinês. Tanto melhor — Cuba e China são ditaduras. “Vocês estão vendo o que fazem na internet? Espalham mentiras, receitam remédio para Covid que não funciona”, afirmou no Twitter, a modo de exemplificar onde há problema. Em São Luís, no Maranhão, deu outro exemplo: “Vi como a imprensa destruía o Chávez”.
Em 2012, fui observador internacional da
última eleição de Hugo Chávez, a convite do Sindicato dos Jornalistas
Venezuelanos. Em Petare, a maior favela de Caracas, assisti, numa seção
eleitoral após a outra, aos fiscais do PSUV, partido do governo, orientarem os
eleitores dentro da cabine de votação. Aqui chamamos de voto de cabresto.
Estava no TSE de lá quando Henrique Capriles e Chávez disputavam voto a voto a
contagem, e a luz do prédio simplesmente caiu. Quando voltou, mais de uma hora
depois, Chávez abria folga. O sindicato dos jornalistas não chamou observadores
de todo o continente à toa — tinham medo. Medo dos motoqueiros milicianos de
camisa vermelha, medo dos jornais tradicionais que já se desmantelavam sob
constante ataque econômico e policial do Estado, da sombra da censura que se
aproximava. Foi há dez anos.
Que fique claro: nem Lula nem Dilma
Rousseff jamais tentaram fazer no Brasil o que Chávez fez na Venezuela.
Bolsonaro é o chavista aqui. De direita, mas sua visão de democracia é a mesma.
Não faz sentido Lula trazer Chávez para uma
conversa sobre imprensa se diz que deseja o modelo britânico. O modelo
britânico para imprensa é a autorregulação. Jornais como Guardian, Financial
Times e Independent escolheram que preferem não ser observados pelo órgão
financiado pelo governo para observar a imprensa. É a isso que Lula se refere?
Por certo, não deve ser. A imprensa
britânica, principalmente a sensacionalista, é conhecida internacionalmente por
sua selvageria. Casos extraconjugais de políticos são divulgados nos mínimos
detalhes, celebridades são perseguidas nas ruas por fotógrafos, há casos da
captação de áudios privados por repórteres. No Brasil, não há nada sequer
parecido com isso.
Mas, afinal, Lula quer regular a imprensa
ou quer regular a internet? Porque são coisas muito diferentes. No tuíte, ele
cita o uso do modelo britânico para evitar que na internet se divulguem
remédios falsos para Covid-19. O modelo britânico não resolve esse problema —
ninguém conseguiu ainda resolver o problema da informação falsa na internet. A
primeira vez em que ficou claro no mundo todo o impacto das fake news nas urnas
foi justamente no Reino Unido, em 2016, no plebiscito do Brexit.
A censura prévia à imprensa é proibida em cláusula pétrea na Constituição. Se Lula chegar ao segundo turno contra Bolsonaro em 2022, não haverá escolha para quem deseja viver numa democracia liberal. Isso quer dizer que Lula levará o voto de muitos que rejeitam suas ideias. Não há democracia sem uma imprensa com total liberdade de apontar corrupção crassa em governos como o dele. É hora de o ex-presidente ser claro a respeito do que deseja. Porque, até agora, ele está misturando vários temas distintos sem produzir sentido.
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