Folha de S. Paulo
Presidente pode ter levado a mentira a um
novo patamar, mas está longe de ser o único líder que já mentiu
Bolsonaro representa um desafio para os
grandes veículos de imprensa. Primeiro porque os
elegeu como inimigos jurados, acusando-os sempre que pode. E em segundo
lugar porque, enquanto o jornalismo visa a trazer clareza e fatos ao debate
público, a comunicação do presidente tem o objetivo contrário: criar uma
verdadeira nuvem
de afirmações falsas e acusações sem provas de modo que o debate
racional fique impossível.
Em reação a isso, muitos jornais —inclusive a Folha— tomaram a decisão inédita de classificar como “mentiras” algumas das falas factualmente erradas do presidente (e de pessoas do seu entorno). Isso tem sido celebrado como uma tomada de posição histórica contra uma ameaça singular à nossa democracia. Nesse caso, devo discordar.
Qual informação objetiva nova é dada é
quando, em vez de dizer que o presidente errou, dizemos que ele mentiu?
Nenhuma. Ao dizer que alguém mentiu, estamos adicionando um juízo sobre a
intenção da pessoa: estamos dizendo que ela afirmou, conscientemente, algo que
acreditava ser falso. É esse juízo que vem ao primeiro plano.
Não conhecemos o interior de ninguém. Toda
afirmação sobre intenções tem uma grande dose de interpretação. E essa interpretação
inevitavelmente revelará o que nós pensamos sobre essa pessoa; se gostamos dela
ou não. Se for alguém que estimamos, cometeu um equívoco, exagerou
indevidamente, confundiu-se, usou da malícia própria da política. Se o
execramos, então ele mentiu mesmo, e a mentira prova sua perversidade
fundamental.
Bolsonaro pode ter levado a mentira a um
novo patamar na política brasileira, mas está longe de ser o único líder que já
mentiu. Aliás, político mentir é até um lugar comum. Por que só a Bolsonaro é
reservado esse verbo?
Para o leitor anti-bolsonarista (é o meu
caso), ver ali em letras garrafais que Bolsonaro mentiu dá uma sensação de alma
lavada. Até o jornal reconhece a perfídia do monstro que nos governa! Agora
restará a seus apoiadores apenas reconhecer o grave pecado que cometeram, ou
então se entregar de vez ao amor do mal em si mesmo. Esse sentimento de
justificação é gostoso, mas perigoso.
Para um apoiador ou simpatizante do
governo, a reação será bem diferente. Ele apenas confirmará sua ideia de que o
jornal é um veículo de oposição e não uma fonte confiável de informação. Estará
provada a má vontade da imprensa com o presidente. “E quando o Lula fala algo
errado, ele também ‘mente’?”
O leitor que já
não confia no presidente não precisa ser convencido de que ele errou.
Quem precisa é justamente aquele a quem as mentiras de Bolsonaro enganam, isto
é, que confia nele. E esse leitor agora estará menos propenso a levar a
refutação a sério. Ou seja, a própria finalidade da linguagem mais carregada
—enfrentar o governo— será frustrada.
Corrigir erros é fundamental e presta um
serviço a todos. Fazer o exame de consciência das figuras que nos governam já é
algo bem mais complicado. Qualquer pretensão de objetividade vai embora quando
embarcamos nesse exercício.
A oposição a um governo destrutivo como o
de Bolsonaro é necessária. Mas isso não significa que todos devam incorporá-la
em sua prática profissional. Hoje, mais do que nunca, o público precisa de
—embora nem sempre queira— uma imprensa capaz de apresentar os fatos concretos
para além dos discursos tendenciosos. O debate público ganha mais quando jornais
são capazes de manter sua objetividade do que quando a sacrificam em nome da
oposição a um governo péssimo.
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