O Estado de S. Paulo
No orçamento dos governos, há espaço para
combater a fome, mas não há disposição
Não conheço Rosângela Sibele. Escolhi sua
história para este Dia das Crianças. Li sobre ela nos jornais: suco Tang,
miojos e uma garrafinha de Coca-cola. Mãe de cinco, sendo duas crianças
pequenas, ela disse que estava com fome ao ser presa pelo furto. Consegui
imaginar mais sobre o seu drama nas anódinas planilhas do Portal da
Transparência.
É que com as informações burocráticas do
site é possível conjecturar sobre a sua desgraça, comum a tantos brasileiros
neste 2021. Rosângela Sibele nunca foi beneficiária do Bolsa Família. Recebeu o
auxílio emergencial em 2020. Neste ano, parece ter sido cortada fora. Como o
ministro Paulo Guedes argumentou no início do ano, o auxílio emergencial até
voltaria em 2021, após ser suspenso durante a segunda onda, mas seria
focalizado.
Índole indiscutivelmente voltada à
delinquência. Apesar do pleito da Defensoria, Rosângela Sibele teve a soltura
negada pela primeira e pela segunda instância. Os desembargadores consideraram
que seu comportamento perdeu a característica de bagatela e o princípio da
insignificância não pode ser acolhido. Rosângela Sibele já havia furtado
alimentos e produtos higiênicos duas vezes, antes da pandemia.
Por que uma mãe que furta alimentos nunca esteve no nosso principal programa social? Por que foi preciso uma pandemia e um benefício generoso como o auxílio emergencial de 2020 para receber apoio? Por que no pior momento da crise ele foi cortado? Sua história, assim de longe, parece contar o fracasso de nossa política social que perpassa vários governos.
Pode ser que você ache que benefícios como
o Bolsa Família deveriam ser focalizados ou pode ser que ache que deveriam ser
expandidos: em qualquer versão uma mãe em insegurança alimentar deveria fazer
parte. Não é nem como se ela morasse em um rincão, porque vivia na maior cidade
do País.
Doravante, vamos chamá-la de Faminta. Para
aproveitar a ironia da história. É que o relator da prisão se chama Farto. Foi
o Dr. Farto que escreveu que, por conta dos furtos anteriores, a Faminta tem
índole indiscutivelmente voltada à delinquência. Como se a pandemia, o
desemprego, a inflação – e a desproteção estatal – não existissem.
Os demais desembargadores acompanharam
Farto, e Faminta continuou na cadeia. Dou um suco Tang para o leitor que
descobrir se Farto estava entre os desembargadores do TJ que recebiam
auxílio-moradia, equivalente a umas 200 vezes o valor do furto de Faminta.
Licitamente, claro, assim é como é considerado lícito para o Estado “focalizar”
e não pagar o Bolsa ou o auxílio a quem tem direito. Ou como é lícito o
dinheiro de ministro de Estado morar em paraíso fiscal.
Faminta, sem o auxílio emergencial ou
auxílio-moradia, mora na rua. De fato, ao que parece não tem a guarda das
crianças, que já estariam com a avó. Talvez seja um alívio para o leitor que se
pergunta, como eu, se neste Dia das Crianças os filhos percebem que a mãe está
na cadeia. Ou para o católico que se pergunta se, neste Dia de Nossa Senhora
Aparecida, a mãe já se acostumou com a distância dos filhos. Também é lembrete
de que transferências de renda, embora importantes, não conseguem mudar muitas
coisas – a própria crise habitacional, por exemplo.
No final do ano passado, meu editor me
pediu um texto para um especial do jornal, que sairia no inicinho de janeiro
com perspectivas para o novo ano. Havia otimismo com a recuperação econômica e
a vacinação. Mandei o texto: 2021 vai ser pior. Não sabia, claro, da diabólica
variante de Manaus, mas me preocupava com o fim do auxílio emergencial. Já a
indiferença, a perda de coesão social, não davam pra ver de longe.
O sofrimento enorme de muitas famílias no
País é evitável e no trilionário orçamento dos governos há espaço, embora falte
disposição, para combater a fome. Naturalizaremos mães famintas na cadeia como
naturalizamos com desfaçatez as vantagens dos ricos com o “não é ilegal”?
Na recessão da Dilma, Rosângela Sibele
tinha furtado desodorantes. Deveria ter aberto uma offshore.
Nenhum comentário:
Postar um comentário