segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Luiz Carlos Mendonça de Barros* - Inflação, um cisne negro global

Valor Econômico

Para normalizar o descompasso atual entre oferta e demanda, é preciso mais do que uma postura burocrática, que é o que demanda a maioria dos analistas do mercado financeiro

Podemos hoje dizer que o desequilíbrio causado na economia mundial pela pandemia da covid 19 deve ser entendido como um Cisne Negro. Esta expressão caracteriza um evento econômico totalmente inesperado - e agora também desconhecido - e pode ajudar a explicar a crise inflacionária que atinge as maiores economias do mundo. Os sinais hoje são claros com um choque de preços que atingiu mercados tão distintos como o de componentes eletrônicos, petróleo e gás, fretes marítimos internacionais e commodities agrícolas.

Anexo a esta coluna apresento um gráfico com os dados da inflação ao produtor na Europa entre 2020 e setembro deste ano. Ele mostra o comportamento da chamada inflação “na porta de fábrica” nos meses iniciais da pandemia e após o início dos programas de estímulos adotados pela grande maioria dos países para enfrentar a quase depressão econômica que se previa à época. Gráficos semelhantes em outras economias do Primeiro Mundo e do mundo emergente mostram o mesmo quadro de forma que podemos olhar para a Europa como campo de teste para entender o surto inflacionário que vivemos hoje.

A informação mais importante do gráfico apresentado é a desproporção entre a deflação ocorrida entre fevereiro e maio de 2020, a recuperação dos preços a partir do segundo semestre e, finalmente, o pico que vivemos hoje. A passageira deflação inicial foi fruto de dois movimentos opostos criados pelo pânico que se instalou: de um lado o isolamento social que fez a demanda por bens e serviços despencar e de outro o movimento racional das empresas para liquidar rapidamente seus estoques - inclusive o representado por encomendas ainda não recebidas - antes que o choque de demanda se aprofundasse como era previsto por todos os analistas.

Este período de preparação para uma queda da atividade econômica foi acelerado pela demora da maioria dos países em encontrar uma forma de combater com credibilidade a pandemia apesar da disponibilidade bastante rápida de vacinas efetivas. Neste cenário as medidas monetárias - mas principalmente as de natureza fiscal - tomadas pelos governos nacionais criaram uma geração de renda adicional nos consumidores, com boa parte dela transformada inicialmente em poupança voluntária na preparação para o pior que se esperava vir.

Mas a volta progressiva da circulação das pessoas na medida em que a vacinação se mostrava eficiente - mesmo com o vai e vem provocado por surtos localizados de piora da pandemia - fez com que a atividade normal dos consumidores tomasse de surpresa o lado da produção. O emprego começou a se recuperar na maioria dos países e deve continuar ao longo dos próximos meses. Os dados sobre geração de empregos nos Estados Unidos divulgados na última sexta feira mostram que, depois de perder 21 milhões de empregos privados em abril de 2020, a economia americana já recuperou 16 milhões. A taxa de desemprego voltou a ficar abaixo dos 5% e os salários aumentaram 4,6% nos últimos 12 meses até setembro. (vejam uma nota do Iedi sobre o emprego no Brasil na parte final desta coluna).

Preparados para enfrentar uma demanda muito fraca por longo tempo o setor produtivo não respondeu com rapidez necessária ao aumento inesperado da demanda. Além disto, enfrentaram - pela primeira vez na história da globalização da produção - um colapso no sistema de logística entre países, com o congestionamento de portos e vias marítimas de transporte, e uma explosão nos custos de movimentação de cargas via containers com um aumento de mais de 8 vezes o seu custo por metro cúbico de espaço disponível nos navios. Este descolamento no tempo entre a demanda final efetiva e a oferta de produtos e componentes por parte do sistema produtivo, inclusive por questões logísticas, ressuscitou de forma agressiva a velha inflação de demanda de tempos passados.

Este quadro ficou agravado pelas condições de liquidez monetária criada pelos Bancos Centrais ainda na fase do pânico recessivo e que só agora está entrando no radar das autoridades monetárias no Primeiro Mundo para sua correção. Os juros muito baixos adicionaram uma componente especulativa em vários mercados mais sujeitos às operações com contratos futuros. Foi o que aconteceu no Brasil com a taxa Selic em 2% ao ano em função de projeções extremamente baixas definidas pelo sistema financeiro para a inflação em 2021 e 2022. Dadas as nossas condições históricas, a especulação contra o real adicionou um elemento muito forte para a elevação da inflação.

Mas o desequilíbrio do lado da oferta que vivemos hoje - e que só poderá ser corrigido ao longo de um tempo mais longo - faz com que a inflação “da porta da fábrica” deva persistir por pelo menos mais três ou quatro trimestres entrando, portanto, em 2022. Isto vai exigir das autoridades monetárias cautela e precisão na gestão do aperto das condições financeiras ao longo dos próximos meses para evitar uma recessão mais à frente, sem que a inflação se normalize rapidamente.

É preciso entender que em uma situação de Cisne Negro como estamos hoje, os protocolos conhecidos não repetem os mesmos resultados de tempos normais. É preciso, para normalizar o descompasso atual entre oferta e demanda, mais do que simplesmente uma postura burocrática, mas que infelizmente é o que demanda a maioria dos analistas do mercado financeiro.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.

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