Folha de S. Paulo
Prova de fogo da pandemia deslocou-se da
esfera da ciência para a da política
Meio século atrás, falava-se muito no
Sistema, assim com maiúscula. Era, simplesmente, uma referência velada à ditadura
militar, então no seu apogeu. O Sistema, porém, está de volta, em
acepção bem mais antiga, invocada mundo afora pelas campanhas antivacinais:
o "Estado profundo", isto é, uma ordem oculta cujas tramas opressivas
precisariam ser desmascaradas. No fundo, trata-se de versão atualizada de um
tema perene da política extremista.
"Ditadura sanitária", eis a síntese mobilizadora que cunharam. Na Holanda, um deputado da ultradireita populista classificou os não vacinados como "novos judeus", submetidos aos "novos nazistas". O paralelo infame circula em dezenas de países. Antes, o discurso extremista dizia que a pandemia era uma invenção do Sistema —ou seja, dos "comunistas" ou da "elite globalista". Hoje, assegura que as vacinas são frutos tóxicos da mesma conspiração de malfeitores engajados na destruição das nações e das liberdades.
Teorias da conspiração não surgem do nada,
como raios em céu claro. Num primeiro momento, a China calou os médicos que
identificaram a epidemia em Wuhan e impediu a investigação da OMS sobre a
hipótese improvável de escape acidental do vírus de um laboratório.
A Sputnik V,
que se revelaria uma boa vacina, começou a ser aplicada na Rússia antes da
conclusão dos testes de fase 3. A emergência sanitária foi utilizada, nos EUA e
na Europa, como pretexto para a xenofobia e diversos regimes autoritários
aproveitaram a circunstância para ampliar a repressão a opositores. Mas o
objetivo da propaganda extremista é distinto: semear a desconfiança nos
mecanismos da democracia.
A influência deles não deve ser menosprezada. Nos EUA,
a mais veloz campanha de imunização do mundo chocou-se com a resistência
vacinal e estagnou diante da muralha dos 40% que recusam a injeção. Resultado:
entre os hospitalizados por Covid-19, cerca de 90% são não vacinados. A muralha
ergue-se, também, na Rússia (rejeição superior a 50%) e na Europa Central
(entre 25% e 40%).
A crença na conspiração é tão antiga quanto
a política, mas adquiriu peso singular justamente quando a ciência opera um
salto histórico, produzindo vacinas eficazes em tempo recorde. O paradoxo
decorre de uma revolução tecnológica concomitante, que destronou o jornalismo
profissional: a emergência das redes sociais globalizadas.
No passado recente, a imprensa filtrava os
caroços da mentira bruta. Hoje, operado por correntes extremistas, o megafone
das redes sociais amplifica a desinformação. Nos atestados de óbito de uma
parcela significativa das vítimas da pandemia seria preciso escrever
"morreu de política".
O Brasil está
distante dos níveis de resistência vacinal dos EUA, o que
reflete nossa tradição de vacinação e a natureza pelicular do extremismo de
direita no país. Contudo, há mais de um mês, a campanha de imunização perdeu
velocidade, de modo que não atingiremos 70% de cobertura antes de meados de
janeiro.
A causa principal está na disfuncionalidade
do poder público em estados amazônicos, onde a cobertura gira em torno de 40% a
55% e mesmo no Rio de Janeiro (cobertura de 62%, como a da Paraíba).
Entretanto, no Centro-Sul, manifesta-se em algum grau a resistência política de
raiz bolsonarista.
Os fanáticos de uma falsa "liberdade
de escolha" conseguiram provocar impasses difíceis. Na França, a barreira
foi quebrada por meio do passaporte vacinal, imitado em diversos países. Na
Áustria, sem outra saída, o governo anuncia a obrigatoriedade da vacina.
Segundo pesquisas, a maioria dos austríacos concorda com a imposição –mas o
extremismo conseguiu reunir quase 50 mil numa
manifestação de protesto em Viena.
A prova de fogo da pandemia deslocou-se da
esfera da ciência para a da política. O inimigo mais perigoso não é o vírus. É
o discurso sobre o Sistema.
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