O Estado de S. Paulo.
Não há dúvida de que nossas instituições políticas atingiram o ponto mais baixo de sua história
Temi parecer pedante ao usar o substantivo
treno (do grego thrênos, canto ou oração pungente) no título deste artigo, mas
não me vem à mente outro termo que traduzisse o que sinto ao ver nosso país
despencando morro abaixo, incapaz de responder à crise que há anos nos assola.
Não há dúvida de que nossas instituições políticas atingiram o ponto mais baixo de sua história. No Executivo, um presidente que fez o que podia para dificultar o trabalho dos agentes de saúde no combate à pandemia, só pensa em se reeleger e ornamenta seu desapreço pela liturgia do cargo que ocupa com tiradas do mais duvidoso humor. No Legislativo, o presidente da Câmara parece pensar que sua função se exaure na tarefa de barrar o mais que justificado impeachment de Jair Bolsonaro. No Judiciário, desde a tragicômica exegese lewandowskiana do artigo 52 (inciso 15, parágrafo único) da Constituição federal de 1988, adrede concebida para beneficiar Dilma Rousseff no episódio do impeachment, só o que vimos foi uma interminável melopeia entoada com o único objetivo de obscurecer as falcatruas perpetradas pelo sr. Luiz Inácio Lula da Silva, notadamente na Petrobras, e admitir sua elegibilidade para a Presidência da República em 2022. O resultado de tudo isso serão, provavelmente, mais oito anos de Lula e a continuidade da idiota polaridade entre ele e Bolsonaro, que teve início na eleição presidencial de 2018.
Seria tudo muito engraçado, se tais fatos
não tivessem como pano de fundo a pandemia de covid-19.
Neste quadro medonho, com o próximo pleito
presidencial reeditando a polarização das facções políticas chefiadas por Lula
e Jair Bolsonaro, cada um pondo fogo pelas narinas, com base em quê nutriremos
a expectativa de um equacionamento adequado de nossas contas fiscais, de uma
reestruturação enérgica da máquina de Estado e da atração de investimentos na
escala em que necessitamos?
O que acima se expôs diz respeito ao
desempenho dos atuais titulares dos Três Poderes, mas o estrábico desempenho
deles resulta de um acúmulo de causas. A primeira é o travejamento
institucional de nosso sistema político. Não existe atualmente em Brasília,
como bem sabemos, um elenco que se abalance a tentar reformar o anêmico enredo
institucional que nos rege. Se tivesse de ressaltar um só aspecto dele, ficaria
no mais simples: o formigueiro de partidos que vão diariamente a Brasília a fim
de exercitar sua cômica coreografia do doce far niente. Na Câmara, temos
atualmente 24 partidos, nenhum dos quais capaz de amealhar 20% das cadeiras.
Penso que o leitor convirá comigo em que isso e nada são a mesma coisa.
A segunda causa oculta algo ainda pior que
a atual impotência da sociedade, à qual fiz referência acima. Não vejo como
nossas instituições de governo possam voltar a um nível razoável de desempenho
enquanto não tivermos elites mais coesas, lúcidas e responsáveis. É lógico que
emprego o conceito de elites no sentido sociológico, amplamente aceito, não na
acepção comum no século 19, que se referia a grupos dirigentes interligados por
laços de hereditariedade, menos ainda com intenção encomiástica. As elites que
tenho em mente deveriam ser a parte inferior do iceberg político, balizando e
conferindo consistência à atuação do Estado. No mundo atual, já praticamente
inexistem elites aristocráticas e hereditárias como as do século 19. O que
existe são apenas grupos numéricos: os ápices das diferentes hierarquias que em
tese compõem a espinha dorsal da sociedade: a alta administração civil e
militar, os empresários, o alto clero, os jornalistas, intelectuais e
cientistas mais destacados, e assim por diante.
Claro, os “ápices” a que me refiro não são
uniformes em termos de poder. Um scholar que obteve seu PHD nas melhores
universidades americanas faz parte da elite cultural, mas para pertencer ao
ápice da elite econômica ele teria de viver numa mansão, passar os fins de
semana numa casa de campo ou no litoral e, quem sabe, possuir um iate de US$ 10
milhões. Tais atributos o qualificariam inicialmente como um possível membro da
elite, mas, para fazer realmente parte dela, ele teria de se sentir movido por
uma missão, uma vocação de exemplaridade, um desejo de servir ao bem público e
à sociedade. Se tivéssemos ao menos isso, nossos 24 partidos poderiam levar sua
vidinha como quisessem, pois não passariam de um epidérmico incômodo. Mas não:
elites com um mínimo razoável de coesão, comunicando-se umas com as outras com
certa frequência, capacitando-se para enfrentar os desafios (e oportunidades)
com que o País de tempos em tempos se depara, isso, decididamente, não temos.
Temos, como disse, grupos apenas numéricos, atomísticos, precariamente
conectados.
Preparemo-nos, pois, para o espetáculo que
se vai encenar no Coliseu em outubro de 2022. No caminho, olhando para um lado
e para o outro, é possível que vejamos famintos desmaiando enquanto aguardam
atendimento em postos de saúde e famílias catando comida descartada ou
comprando ossos para a sopa de que irão se servir no jantar.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é
membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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