Correio Braziliense / Estado de Minas
Há mais convergências
políticas e ideológicas entre Bolsonaro e Putin do que as aparências, mas os
interesses geopolíticos do Brasil e da Rússia são muito diferentes
Como acontece com algumas palavras do nosso
vocabulário, a palavra obrigado em russo tem vários significados. “Spassibo” se
pronuncia com a tônica na segunda sílaba e o “a” no lugar do “o”: spa-ssí-ba.
Sua origem é a expressão “spassi bog”, do eslavo antigo, que significa “Deus o
salve”. Entre os internautas russos, foi abreviada para “spassib”; na
comunidade LGBT , “passib”. É uma palavra muito usada para agradecer, mas
também pode ter outros significados, como em “skaji spasibo”, usado para dizer
que uma pessoa é mal-agradecida.
Os russos podem ser rudes na forma de falar obrigado: “Spasibo v karman ne polojich”, isto é, “você não pode colocar obrigado no bolso”. Ou extremamente agradecidos: “Spassibo ogromnoe” é literalmente um “enorme obrigado”. Essa expressão é usada quando alguém realmente fez um favor ou ajudou muito. Prestemos muita atenção, pois, na forma como o presidente Vladimir Putin agradecerá a visita do presidente Jair Bolsonaro, que viaja amanhã para a Rússia.
Bolsonaro está indo para o olho do furacão
da conjuntura política mundial. O conflito da Ucrânia exumou a “guerra fria” e
corre o risco de virar guerra quente, se Putin realmente decidir invadir a
Ucrânia, o que pode ocorrer a qualquer momento, segundo o alarmismo dos
serviços de inteligência norte-americano e britânico. Seus dois encontros com
Putin — uma reunião bilateral e um almoço entre os dois chefes de Estado —
foram marcados antes da escalada do conflito, com foco nas relações comerciais,
principalmente a exportação de carne e a compra de fertilizantes. O contexto,
porém, mudou completamente, devido à dimensão geopolítica envolvida na relação
Brasil-Rússia.
Houve momentos na História do Brasil em que
essas relações estiveram no centro da nossa política nacional. O primeiro foi
em 1935, quando Luís Carlos Prestes, líder da Aliança Nacional Libertadora
(ANL), tentou tomar o poder; o segundo, em 1964, quando o líder comunista
articulava a reeleição de João Goulart. A aproximação do presidente brasileiro
com o então premiê da União Soviética, Nikita Kruschov, corroborada pela visita
do astronauta Yuri Gagárin e a exposição soviética no Rio de Janeiro, serviria
como um dos pretextos para o golpe militar.
A Federação Russa não tem um regime
comunista, porém, em termos geopolíticos, seus interesses estratégicos são os
mesmos da velha Rússia czarista e da antiga União Soviética. Após a derrubada
do Muro de Berlim, frustraram-se as aspirações russas de ingressar na União
Europeia, enquanto a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada
pelos Estados Unidos e a Inglaterra, avançou em direção às antigas repúblicas
do Leste Europeu.
A contrapartida foi a guinada nacionalista
de Putin e sua deriva autoritária, a partir de uma aliança com os militares e a
Igreja Ortodoxa, o controle do Judiciário, do setor energético e dos meios de
comunicação. Quando assumiu o poder, Putin não tinha uma estratégia clara,
encontrou um país em profunda crise econômica, desagregação e em meio ao caos
social. Ergueu a bandeira da ordem e, com ela, governa há quase 22 anos. O
outro lado dessa moeda é que a Rússia se tornou uma “democracia iliberal”.
Há muito mais convergências políticas e
ideológicas entre Bolsonaro e Putin do que as aparências, mas os interesses
geopolíticos do Brasil e da Rússia são muito diferentes. Geopolítica é um dos
pilares de qualquer política de Estado. A crise da Ucrânia empurra a Rússia
para uma aliança militar com a China, porque aquela ex-república soviética pode
se transformar numa nova Taiwan.
Passo em falso
Na história da Rússia, a Ucrânia sempre foi
um corredor de acesso para os invasores europeus, foi assim com Carlos XII da
Suécia, Napoleão Bonaparte (França) e Adolfo Hitler (Alemanha). Da França a
Moscou, não existe nenhuma barreira natural que facilite a defesa russa, como a
Sibéria e os Montes Urais, a não ser a profundidade do seu território e o
inverno. Com a entrada da Ucrânia na Otan, essa vantagem seria anulada, porque
a distancia entre Kiev e a capital russa são apenas 860km, percurso que pode
ser feito em menos de 11 horas.
A expansão da Otan para a Ucrânia, em
contrapartida, é um esforço dos Estados Unidos e da Inglaterra para conter o
declínio da hegemonia de uma aliança ameaçada pela transformação da China na
grande potência econômica que é hoje. Com o deslocamento do eixo do comércio
mundial do Atlântico para o Pacífico, as necessidades logísticas da Rússia são
outro fator de sua aproximação com a China, ainda mais quando o arranjo
econômico que a une aos países da Europa central está sendo colocado sob esse
forte estresse da crise da Ucrânia.
O que Bolsonaro fará na Rússia? Em termos geopolíticos, o Brasil é um país do Ocidente, historicamente ligado à Europa e aos Estados Unidos, muito embora hoje nosso principal parceiro comercial seja a China. Por razões ideológicas, Bolsonaro tem mais identidade com líderes autoritários, como o ex-presidente Donald Trump, um amigo de Putin, e Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria. Mas será um grande passo em falso se aproximar de Putin quanto à questão ucraniana, ou seja, para além dos nossos mútuos interesses comerciais, no momento em que o eixo da conjuntura é uma ameaça de guerra. Nossa tradição diplomática é a defesa da paz e da solução negociada dos conflitos. Esse é o caminho a seguir.
Um comentário:
Cada um vê o conflito de um jeito,ninguém sabe,com certeza,de nada.
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