segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Ricardo José de Azevedo Marinho*: No coração da Jangada de Pedra

A institucionalização da democracia na Espanha com os Pactos de Moncloa não só importou a criação de novos direitos e de novos procedimentos destinados a lhes conceder eficácia, como também ensejou um ambiente propício para que antigas instituições renovem sua forma de atuar e se atualizem na complexa cena contemporânea. Esta é bem a discussão que envolve o Trabalho, do qual é testemunha a legitimação do chamado salário-mínimo interprofissional (SMI) com o concurso das organizações sindicais e as associações empresariais, inovando o sistema dos deveres e direitos do trabalho. Importa reter que isso não nada tem a ver com as medidas urgentes com vistas à reforma trabalhista e esse equívoco e confusão acabou por colocar o Governo diante de uma saia justa.

Mas como é uma prerrogativa legal concertada e ofertada a partir de iniciativa do Governo (isto sim passível de se fazer benchmarking governamental), ele apresentou a proposta para fazer o SMI chegar aos 1000 euros mensais. Para, além disso, tal mudança teria vigência retroativos para 1 de janeiro de 2022. É um aumento de 35 euros em relação ao vencimento mínimo atual, de 965 euros mensais.

Depois de se reunir com as organizações sindicais e as associações empresariais, o Governo confirmou que pretende chegar o SMI para aquele patamar de 1000 euros com 14 contraprestações.

Apesar das organizações sindicais terem informado que o Ministério colocou para negociação o valor de 996 euros, um dos três cenários propostos pela Comissão Assessora de Análise do SMI que aconselhou o Governo, mas que esse número não era a decisão final.

Nenhuma das três recomendações da Comissão coincide com os exatos 1000 euros que são a opção do Ministério. As sugestões eram, respectivamente, 989 euros, 996 euros ou 1005 euros, mas a proposta do Governo buscou um valor intermédio entre os dois mais altos. Ainda assim este será um incremento inferior à inflação esperada para este ano.

Naqueles três cenários, a atualização seria de 22 euros, de 31 euros ou de 40 euros. A opção do Governo pela melhoria em 35 euros coloca o vencimento num número redondo. A proposta está fechada, que está a ser confirmada num diploma do Governo. As associações empresariais não estão de acordo, na medida em que as afeta diante da gravidade da crise econômico-financeira, além terem de operar diante de razões estranhas à lógica do mercado.

O objetivo do Governo passa por aumentar o salário de forma progressiva até a retribuição atingir 60% do salário médio conforme indicou a Comissão Assessora de Análise do SMI para o atendimento a Carta Social Europeia até o final da legislatura, no próximo ano. Para isso, o salário terá que alcançar os 1063 euros em 2023.

Está claro que a trajetória de melhoria do SMI - de 31% desde 2019, em 229 euros - parece estar oferecendo um impacto na redução da pobreza.

Ocorre que as cidadãs e os cidadãos estão sujeitos a trabalho precário e à incerteza de relações de trabalho. Não está claro que a reforma da legislação trabalhista ajudará a superar esse problema.

Entre nós, o salário-mínimo também tem aumentado nos últimos anos, e o Governo voltou a atualizar a retribuição mínima no final de 2021 para este ano, no valor horário, a R$ 5,51 (cinco reais e cinquenta e um centavos) que não perfaz nem 1 euro.

Em Portugal com as eleições vencidas pelo Partido Socialista (PS), o mesmo comprometeu-se em negociar um acordo na concertação social (com um horizonte até 2026) para seguir melhorando o salário mínimo anualmente, em função da dinâmica do emprego e do crescimento económico, com o objetivo de atingir pelo menos os 900 euros no ano apontado.

Claro está que a Península Ibérica segue sua jornada como jangada de pedra de José Saramago só que dessa vez acompanhando a complexa navegação oceânica europeia por estarmos numa cercania de um cenário dificílimo, pois advindo de lide sistêmica que extrapola aquele continente, bem como adentra na pandemia em curso, e quiçá, por isso, quem sabe se possam encontrar os meios para que o justo prevaleça para todas e todos.

E aqui? Alguns fingem desconhecer o mundo e às suas contingências, e se fala para o mundo da lua. Insistisse nas verborragias fazendo de conta que vão dirigir a vida pela força de canetadas revogatórias ou não. Ao se virar as costas as nossas instituições, desperdiçasse o chão para se mostrar a nossa caminhada constitucional e que tem nos orientado no sentido de criarmos uma sociedade mais justa.

*Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom artigo,mas ecrever 'cidadãs e cidadãos','todas e todos' eu acho de uma desnecessidade sem fim.