O Estado de S. Paulo
O transitório nos faz ser o que somos, pois sem ele seríamos todos tediosa e perigosamente iguais
Um dos meus professores me disse que sua
vida profissional cabia em caixas de papelão. “Em 42 caixas, para ser
preciso!”, afirmou, irônico.
Não entendi bem o “Mestre” pois, aos 20
anos, como eu ia entender um cara com suas 80 e tantas primaveras?
“Como 42 caixas?”, repliquei agastado co
moque tomava co mouma auto desvalorização. “O senhor tem uma bela carreira e
seus livros são importantes. Sua trajetória é impecável.”
“Você não entendeu. Falo de uma vida encaixotada que vai para um depósito para ser, dizem, pesquisada, mas que será esquecida como ocorre com todas as vidas. Roída por traças, como diria um duro Machado de Assis que, por sinal, não foi esquecido...”
Lembrei-me de uma frase do livro Quando
Nietzsche Chorou, de Irvin D. Yalom. Nele, li que Nietzsche teria dito: “Morrer
é duro. Sempre senti que a recompensa final dos mortos é não morrer nunca
mais”.
Naquela época, eu só havia vivido mortes apropriadas
e, digamos, leves como a de vovô Raul. O demasiado humano é, sem dúvida, a
finitude. O transitório nos faz ser o que somos, pois sem ele seríamos todos
tediosa e perigosamente iguais.
Acho que entendo o “Mestre”.
Meus avós, pais, tios e professores não
morrem mais e estão recompensados. Todos foram encaixotados. O morto comum é,
com o perdão do trocadilho, encaixotado apenas uma vez. O “Mestre” supostamente
ilustre é colocado em múltiplas caixas. Um pedaço importante de sua vida vira
um arquivo. Tudo é enquadrado, menos suas lágrimas, angústias e desespero, bem
como a esperança dos escritos encaixotados.
A vida se abre diante de nós por etapa. A
morte igualmente chega aos rodeios. Primeiro, avós e tios, depois pais e,
finalmente, irmãos. O mais duro, diria eu ao filósofo, não é somente morrer, é
honrar o morto quando a morte leva um filho. O sangue do seu sangue.
Escrevo essa melancólica crônica pensando
nos mortos de uma Petrópolis na qual um dilúvio trouxe a morte em torrentes. É
o vale de lágrimas sendo novamente provado nestes tempos em que se faz presente
em todos os lugares e corações.
Quando meus irmãos e eu chegamos à casa
onde meu avô jazia morto na então enorme “cama de casal”, minha avó Emerentina
não deixou que nos aproximássemos do corpo porque estávamos – meus quatro
irmãos, um primo e eu – engravatados e prontos para ir a um baile.
“Vocês não têm nada que fazer aqui”, disse
vovó disfarçando o choro dos seus trinta anos de casamento. “Vocês vão para o
baile. Dancem, namorem, divirtam-se e amanhã vocês vão chorar a morte do seu
avô.”
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