O Globo
Se daqui a alguns anos um historiador
quiser um resumo do manual de Jair Bolsonaro para navegar pela próxima campanha
eleitoral, encontrará uma peça acabada no discurso que ele fez ontem na
Associação Comercial do Rio de Janeiro.
Na atitude, no teor e na plateia, repleta
de aliados — afinal, o presidente estava em seu berço eleitoral — , tudo
remetia a uma espécie de “bolsoverso”, em que a verdade do presidente da
República reinava absoluta.
Em cerca de meia hora, ele percorreu o
roteiro completo, a começar do alvo principal, o Supremo Tribunal Federal
(STF). Na noite anterior, o STF havia mantido a cassação do deputado estadual
Fernando Francischini (União Brasil-PR), aliado de Bolsonaro, por disseminar
fake news contra as urnas eletrônicas.
Citando a discussão em curso na Corte sobre
demarcação de reservas indígenas — que já foi logo avisando que não pretende
cumprir, entre mais aplausos —, Bolsonaro partiu para cima:
"Nunca vi um ministro do Supremo comprando pão na padaria", afirmou, emendando que falta aos magistrados “conhecimento de realidade, de povo”. "Me apontem uma medida que nos tenha ajudado! Não a mim, ao Brasil! É o tempo todo perseguindo, prendendo deputado federal, por palavras! Por piores que tenham sido… cassando o mandato de um deputado estadual por fake news? Qual a tipificação?".
O deputado federal Daniel Silveira
(PTB-RJ), recentemente indultado, ouvia atento e embevecido na primeira fila.
"A que ponto nós chegamos?",
dramatizou.
Entre aplausos e frases de apoio, o chefe
do Executivo se referiu ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
Edson Fachin, como “ex-advogado do MST”, homem que “botou Lula para fora, tirou
da cadeia” e “marxista leninista”.
Afirmou, ainda, que a reunião que Fachin
realizou com embaixadores estrangeiros no último dia 31, para explicar o
funcionamento do sistema eletrônico de votação, foi um “crime”, porque só cabe
a ele e ao ministro de Relações Exteriores, Carlos França, tratar de política
externa.
Para Bolsonaro, o objetivo de Fachin era
“pedir de forma indireta para os embaixadores avisar os respectivos chefes de
Estado que, quando abrir o painel, reconhecer imediatamente o vencedor”. E
provocou:
"Só faltou uma coisa para ele [dizer]
para ser mais coerente: 'o vencedor, Lula'. Que isenção tem um tribunal que age
dessa maneira? [Dizer] isso é atacar a democracia?".
Mas isso não é nada.
"A gente vai resolver isso daí. Acho
que todos nós queremos eleições limpas e transparentes", emendou, sob
ovação.
O que o presidente queria mesmo era mostrar
à audiência que o Brasil “não é mais o país do futuro, e sim o país do
presente”, algo que “só não enxerga quem não quer ou quem quer derrotar o
governo ou quer derrotar a mim”. Por que, afinal, “voltamos [a ser] a décima
maior economia do mundo” e, em mais um mês, “chegaremos a um dígito no número
de desempregados no Brasil”.
Para Bolsonaro, o país está tão bem que
“todo o mundo quer conversar conosco”. Tanto que não há mais espaço em sua
agenda para reuniões bilaterais na Cúpula das Américas, que começa hoje nos
Estados Unidos. A que ele comparecerá para mostrar que a Amazônia “não pega
fogo — e isso não é fake news”.
Bolsonaro ainda garantiu que não errou
“nenhuma” durante a pandemia.
"Nenhuma, zero!", enfatizou.
E sustentou que estava certo em mandar uma
comitiva a Israel para conhecer o spray nasal em fase de estudos para combater
a Covid-19.
"Ah, não tem comprovação
científica", desdenhou, citando as críticas recebidas na época. "E,
ora bolas, a vacina tem comprovação científica?"
A plateira respondeu, aplaudindo
entusiasmada. "Não!".
Nem parecia o mesmo presidente que, na
terça-feira, passou longos minutos sentado sozinho diante de um pelotão de
jornalistas, esperando a chegada dos presidentes da Câmara e do Senado e de
seus ministros, para anunciar um improvisado pacote de corte de impostos e
subsídios aos combustíveis.
O país que ele descreveu também não parecia
o mesmo que acabara de ser informado do triste recorde de pessoas passando fome
— 33 milhões, o maior número em quase três décadas. Na Amazônia de Bolsonaro,
tampouco parece haver um indigenista e um jornalista britânico desaparecidos
enquanto trabalhavam numa reportagem.
Bolsonaro, que tanto fala em narrativas,
acabou aprisionado dentro de uma. Nela, o que não vai bem é culpa do STF ou da
mídia. Quem diz o contrário dissemina fake news e não conhece o povo. As
pesquisas de opinião são todas mentirosas. E o presidente será reeleito. Com
folga.
Um comentário:
Lembrei do Chico Anísio e seu Tim Tones.
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