O Estado de S. Paulo.
Os danos da PEC Kamikaze não se limitam aos estragos fiscais. Congresso conspirou para minar a confiança no País
A PEC Kamikaze burlou normas relativas à
responsabilidade fiscal e à legislação eleitoral, sob a justificativa social de
amparar segmentos em dificuldades. Pilares institucionais foram derrubados para
turbinar o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro. Para driblar a proibição de
criar gastos em período pré-eleitoral, recorreu-se a um estado de emergência de
justificativa questionável.
De olho no cálculo político, a oposição
apoiou as medidas. Derramou-se dinheiro público para todos os lados: aumento do
Auxílio Brasil para R$ 600,00, duplicação do vale gás, subsídio ao transporte
público de idosos, compensação aos Estados por crédito do ICMS no etanol e
vales para caminhoneiros e taxistas. A festa vai custar R$ 41,2 bilhões.
O teto de gastos foi novamente
desmoralizado. Os benefícios vigorarão até dezembro, mas dificilmente haverá
condições políticas para cumprir essa regra. Muito pode tornar-se permanente,
piorando a já grave situação fiscal. Foram desrespeitados princípios para a
realização de emendas constitucionais. Contribuiu-se para solapar a segurança
jurídica essencial à economia de mercado, ao desenvolvimento e à geração de
emprego, renda e bem-estar. Um desastre.
Constituições representam a lei máxima de um país. Fixam limites à ação dos governantes para evitar o despotismo e a arbitrariedade, disciplinando o poder político. Garantem que direitos fundamentais não sofrerão mudanças frequentes ou autoritárias. Asseguram que as regras básicas serão estáveis, não se sujeitando à vontade dos governantes.
Por tudo isso, mudanças constitucionais
devem observar ritos que permitam ampla discussão das propostas, cuidadosa
formulação de seus termos e tempo para uma sadia reflexão sobre as respectivas
alterações. Nos Estados Unidos, por exemplo, emendas constitucionais devem ser
aprovadas não apenas pelo Congresso, mas também por três quartos dos Estados.
Sua tramitação dura dois ou mais anos.
No Brasil, pelo regimento da Câmara dos
Deputados, Propostas de Emenda Constitucional (PECS) são encaminhadas à
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, para exame de sua
admissibilidade ao longo de cinco sessões. Admitida a proposta, o mérito será
examinado por uma Comissão Especial, que terá o prazo de 40 sessões para emitir
seu parecer. Em seguida, a PEC será submetida a dois turnos de discussão e
votação, com interstício de cinco sessões. No Senado, a proposta é apreciada
pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que terá o prazo de até 30
dias para dar seu parecer. O interstício entre o primeiro e o segundo turnos
será de, no mínimo, cinco dias úteis. Na segunda votação, será aberto o prazo
de cinco sessões, quando poderão ser oferecidas emendas que não envolvam o
mérito.
Desse modo, emendas constitucionais costumam
tramitar por seis meses ou mais, o que assegura o debate e a reflexão pelos
parlamentares, ao lado de crítica exercida pela imprensa e pela sociedade.
Ocorre que o plenário das duas Casas do Congresso pode derrubar as normas que
regem a tramitação dos respectivos projetos. Neste caso, as regras básicas não
valem. Foi o que aconteceu na PEC Kamikaze. O Senado a aprovou em dois turnos
em apenas uma tarde, com interstício de apenas uma hora entre uma votação e
outra. A PEC não passou por qualquer comissão. O plenário simplesmente acolheu
o texto do relator. A Câmara, que também aprovou a proposta, foi além na
sofreguidão e irresponsabilidade. Arquitetou-se uma sessão fantasma de apenas
um minuto, às 6h30, para cumprir exigência de norma regimental. Um acinte.
Ao atropelar as regras, o Congresso
conspirou para minar a confiança no País. As empresas perceberão que regras
fundamentais do jogo podem ser alteradas à matroca. A Constituição pode ser
modificada a toque de caixa, sem obstáculos. Por aí, normas tributárias
poderiam ser alteradas com violação do princípio da anterioridade, pelo qual
elas somente valerão no exercício seguinte. Essa regra é rigorosamente adotada
na Inglaterra desde a Carta Magna de 1215.
Os danos da PEC Kamikaze não se limitam,
pois, aos estragos fiscais. Ela nos ensinou que governos populistas podem
alterar regras constitucionais básicas sem submeter-se tempestivamente ao
debate, à investigação da imprensa e ao crivo da sociedade. Nem mesmo o regime
militar foi tão longe. O risco de violação de instituições fundamentais
aumentará à medida que esse processo voltar a se repetir, o que é muito
provável.
É preciso discutir a criação de mecanismos
institucionais que evitem a repetição da irresponsabilidade que caracterizou a
aprovação da PEC Kamikaze. Sem isso, governos do turno, associados a
parlamentares descompromissados com o futuro, podem mudar do dia para a noite
as normas de caráter estrutural – que deveriam ser permanentes –, sem uma
reflexão apropriada de seus efeitos, movidos por objetivos populistas e/ou
eleitoreiros. Sem essa defesa institucional, o Brasil pode tornar-se uma
república de bananas, legando-nos um futuro sombrio.
*Sócio da Tendências Consultoria, foi Ministro da Fazenda
Um comentário:
Já viramos uma republiqueta de banana,temos até o Edu bananinha,rs.
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