Editoriais
Brasil ante o espelho
Folha de S. Paulo
Retórica de Bolsonaro e ataques evidenciam
o risco de violência nas eleições
O presidente do Tribunal Superior
Eleitoral, ministro Edson Fachin, afirmou na
quarta-feira (6) que o Brasil corre o risco de enfrentar versão
piorada do episódio em que uma multidão, insuflada por Donald Trump, invadiu o
Congresso e paralisou a sessão que confirmaria a vitória de Joe Biden nos EUA.
Referindo-se à data da votação no Brasil,
Fachin disse: "A sociedade brasileira, no dia 2 de outubro, colocará um
espelho diante de si. Se almeja a guerra de todos contra todos ou almeja a
democracia e, a partir daí, faça suas escolhas de modo livre e consciente".
O magistrado teve motivos para se expressar
dessa maneira em solo americano. Será bom que a comunidade internacional esteja
atenta à eleição brasileira, em especial se Jair Bolsonaro (PL), num arroubou
trumpista, vier a estimular a contestação ilegal do resultado em caso de
derrota.
Como se sabe, essa hipótese não pode ser considerada remota. O mandatário tem dado seguidas mostras de que pretende manter seu discurso golpista e fazer das urnas eletrônicas o ponto de fuga de seu quadro surrealista.
O delírio alcançou patamar tão elevado que
Bolsonaro anunciou o convite a embaixadores de todos os países para uma apresentação
sobre o sistema eleitoral brasileiro.
Em outras palavras, o presidente da
República diz que pretende relatar ao mundo sua tese delirante segundo a qual
as eleições brasileiras têm sido sucessivamente fraudadas por meio das urnas
eletrônicas —pouco importando a inexistência de uma única prova a favor da
teoria conspiratória.
Trata-se de bravata ridícula que,
infelizmente, não pode ser ignorada como mais um episódio burlesco da atual
Presidência.
Bolsonaro insiste na retórica contra as
urnas não por pretender convencer alguém de sua alucinação, mas por saber que,
dessa forma, insufla sua militância mais fanática.
Um dia depois do alerta de Fachin, uma
bomba caseira atingiu um evento do qual participaria Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), líder da disputa eleitoral segundo as pesquisas de intenção de voto.
Não foi o
primeiro ataque contra atos do petista nem o único atentado da
quinta-feira (7). Fezes de animais, ovos e terra foram lançados contra o carro
do juiz federal Renato Borelli, responsável pela prisão do ex-ministro Milton
Ribeiro, da Educação, em junho.
Essa escalada não pode continuar. Se o Brasil
está diante do espelho, é preciso que seu reflexo seja o de uma democracia
livre e consciente, não o de um país conflagrado e sujeito a intimidações.
Carta em dúvida
Folha de S. Paulo
Proposta de Constituição enfrenta rejeição no Chile; políticas importam mais
Ficou pronta a versão final
da proposta para a nova Constituição do Chile. Para vigorar, o documento
precisa ser aprovado pela maioria dos eleitores num referendo marcado para o
dia 4 de setembro. Aí começam os problemas para os entusiastas do processo
constituinte.
Pesquisa do instituto Cadem divulgada no
domingo (3) mostra que a peça seria rejeitada por 51%; 34% a chancelariam e 15%
não souberam responder. Esses números contrastam com sondagem de fevereiro, que
indicava 56% a favor da nova Carta e 33% contrários.
Vários elementos contribuem para a virada.
O projeto provavelmente está à esquerda da opinião média dos chilenos, e isso
não chega a ser uma surpresa.
A Constituinte surgiu na esteira da
gigantesca onda de protestos de 2019 contra o governo direitista de Sebastián
Piñera. No ano seguinte, o eleitorado votou por uma assembleia exclusiva, com
paridade de gênero e espaço para as populações indígenas. Nesse contexto, o
colegiado eleito teve acentuada maioria de centro-esquerda.
Os escolhidos escreveram uma Carta
caudalosa. São 388 artigos, sem contar as disposições transitórias, o que a
coloca entre as mais extensas do mundo. Encontra-se um pouco de tudo ali.
Há mudanças necessárias, como a reforma da
Previdência —o Chile conta com um sistema de capitalização totalmente privado,
que hoje atende mal um amplo contingente de idosos de baixa renda.
Outras normas são positivas, mas não
precisariam estar na Constituição, caso da legalização do aborto, que costuma
ser regulada por legislação infraconstitucional.
O texto apresenta ainda medidas de impacto
imprevisível, a exemplo de alterações no sistema político, como a reformulação
do Senado e uma forte descentralização administrativa. Não falta um certo
populismo, como a gratuidade do ensino superior público.
Poucos chilenos se deram ao trabalho de ler
a proposta ou ao menos de se informarem sobre ela em fontes confiáveis. Uma
ampla campanha de fake news vem espalhando falsidades sobre a Carta.
Mais importante, Piñera deu lugar ao
esquerdista Gabriel Boric, que já sofre um notável desgaste político
—suficiente para contaminar a avaliação da Constituinte.
Faz sentido que os chilenos queiram se
livrar do texto herdado da ditadura pinochetista. Mas, como o próprio país
mostrou com o invejável desempenho econômico dos últimos anos, as políticas
efetivamente adotadas importam mais que os princípios programáticos enunciados
em Constituições.
A ‘gratidão’ com dinheiro alheio
O Estado de S. Paulo
Nem parece que a lei exige distribuição equânime das emendas entre parlamentares, pois, afinal, todos foram eleitos de forma legítima – os amigos do presidente do Senado e os que não são
O senador Marcos do Val (Podemos-ES)
reconheceu ao Estadão, em espantosa entrevista publicada anteontem, o que
todos já estão cansados de saber: que os controladores do orçamento secreto no
Congresso usam essa cornucópia de dinheiro público para comprar apoio de
colegas parlamentares. O que causa estupefação é a naturalidade com que Do Val
admitiu a distribuição de verbas a partir de critérios arbitrários, à margem da
lei, em atendimento a interesses estritamente particulares.
“A minha parte seria de R$ 10, 15, 20 (milhões)”,
disse o senador do Podemos, como se estivesse falando de tomates na feira.
Falava, na verdade, dos R$ 50 milhões em emendas do orçamento secreto que
recebeu como “gratidão” por seu apoio a Rodrigo Pacheco (PSD-MG) na campanha à
presidência do Senado, em fevereiro de 2021, conforme declarou o próprio Do
Val, candidamente.
O senador do Podemos disse que achou os R$
50 milhões um valor excessivo para seu Estado, o Espírito Santo. E foi indagar
o senador Davi Alcolumbre, então presidente da Casa, sobre o critério utilizado
para a distribuição. “Aquele critério que o Rodrigo falou para vocês lá no
início”, foi a resposta, segundo Do Val. Em outro trecho da entrevista, o
senador diz: “O critério que ele (Rodrigo Pacheco) colocou para mim foi o critério
de eu ter apoiado ele (sic) enquanto outros não apoiavam”.
Eis a que ponto se chegou uma legislatura
que, em tese, vinha promover a renovação da política e uma nova moralidade no
trato da coisa pública. Sem nenhum rubor, um senador admite que o presidente do
Senado usou dinheiro público para “agradecer” o apoio recebido na campanha. Nem
parece que é verba pública, oriunda do bolso do contribuinte. Nem parece que os
recursos são escassos e as necessidades do País, imensas. Nem parece que a lei
exige distribuição equânime das emendas entre parlamentares, porque, afinal,
todos foram eleitos de forma legítima – os que são amigos do presidente do
Senado e os que não são.
O caso é escandaloso por si só. Mas há uma
agravante. Tudo isso ocorreu em plena pandemia, com uma dramática situação
social e econômica, com famílias sem emprego, com milhões de brasileiros
passando fome. Foram destinados R$ 50 milhões por “gratidão” ao apoio na
eleição da presidência da Casa. “Eu achei até muito para eu encaminhar para o
Estado (do Espírito Santo)”, disse o próprio representante do Estado, deixando
claro que os critérios não eram técnicos, mas exclusivamente políticos.
Essa absurda e disfuncional distribuição de
recursos públicos é parte do esquema revelado pelo Estadão que ficou conhecido
como “orçamento secreto”: vultosas verbas destinadas, sem nenhuma transparência
ou controle, para que os caciques do Senado e da Câmara solidifiquem seu poder.
O Supremo Tribunal Federal já disse que essa dinâmica de uso do dinheiro público
é inconstitucional. No entanto, Marcos do Val admite abertamente, referindo-se
aos R$ 50 milhões: “É o valor que todo mundo dizia que é o tal do orçamento
secreto, da compra de votos”.
A fala do senador do Podemos remete à
naturalidade com que o presidente Jair Bolsonaro sempre trata das emendas de
relator. Em abril deste ano, Jair Bolsonaro disse, também candidamente, que o
pagamento de emendas parlamentares por meio do orçamento secreto era um meio
para “acalmar” o Congresso. São as novas finalidades que o bolsonarismo e
aliados atribuem, sem cerimônia, ao dinheiro público: “acalmar” e “agradecer”.
As palavras suaves desvelam uma realidade indecente e ilegal: o público
converte-se em privado, em um processo similar ao que se observa nas
rachadinhas. A diferença é que, no orçamento secreto, os valores são
imensamente maiores.
As presidências da República e das Casas Legislativas, concertadas, transformaram o Orçamento em butim a ser repartido entre aqueles que são da patota ou que, mesmo oficialmente não sendo, fazem vista grossa e aproveitam para tirar sua lasquinha. Sem oposição decente, não admira que gente como Marcos do Val se sinta tão à vontade.
Entre párias e megalomaníacos
O Estado de S. Paulo
Para contrastar o ‘orgulho’ bolsonarista de ‘ser pária’, o PT ameaça retomar a política externa partidária e ideológica que fez a alegria de tiranos esquerdistas nos governos lulopetistas
Tradicionalmente a política externa é tema
sem relevo nas eleições. Mas, seja pelas transformações estruturais do mundo,
seja pelas condições conjunturais do Brasil, nunca foi tão importante subverter
essa tradição.
Aos desafios do século 20 – como as ameaças
nucleares ou o terrorismo – o século 21 acrescentou novos, como os Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável – mudanças climáticas, ajustes na saúde e
seguridade com as transformações demográficas, as crises migratórias –, além da
interdependência econômica e cultural promovida pelas tecnologias digitais. A
pandemia mostrou a importância da cooperação internacional ante esses desafios.
Mas guerras comerciais – especialmente entre EUA e China – ameaçam fragmentar o
mercado global, e conflitos como o da Ucrânia ameaçam o retorno da guerra fria.
Tradicionalmente pacífico, o Brasil é a
segunda maior democracia do Ocidente e, em que pesem as mazelas de seu passado
escravagista, é um exemplo de pluralismo multiétnico. A riqueza de seus biomas
é decisiva para solucionar dois desafios planetários: a sustentabilidade
ambiental e a segurança alimentar.
Por suas dimensões continentais e
populacionais, o País é uma potência regional e pode se tornar uma potência
global. O fato de estar alijado de instrumentos tradicionais de poder – como
armas e dinheiro – torna a diplomacia mais, não menos importante. Transformando
essas carências em ativos, o País construiu, com base nos princípios
constitucionais de adesão aos direitos humanos e às soluções negociadas e no
profissionalismo do Itamaraty, uma consistente tradição de “pluralismo de
contatos”.
A dilapidação desse soft power brasileiro
será um dos legados mais perniciosos do governo de Jair Bolsonaro. Traduzidos
para a política externa, os instintos personalistas, sectários e
confrontacionais que pautaram sua carreira militar e parlamentar fomentaram não
a propalada “independência” do País, mas seu isolamento. O desprezo pelos
direitos humanos; o negacionismo na pandemia; o antiambientalismo; a
subserviência ao desvairado presidente americano Donald Trump e as consequentes
hostilidades ao sucessor de Trump, Joe Biden; a adulação a líderes
autoritários; os atritos gratuitos com líderes como Angela Merkel ou Emmanuel
Macron ou com parceiros comerciais como China e Argentina: tudo isso é mero
corolário de uma doutrina exprimida de forma lapidar por seu chanceler
predileto: o “orgulho de ser pária”.
O petista Lula da Silva, por sua vez,
promete fazer tábula rasa dessa doutrina. Mas não se corrige um erro com outro:
13 anos no poder mostraram o que é a política externa “ativa e altiva” que o
lulopetismo pretende ressuscitar. Não foi ativa, mas ativista; não foi altiva,
mas megalomaníaca.
O voluntarismo ideológico traduzido no
emblema “Sul-Sul” desperdiçou oportunidades comerciais com as grandes potências
ocidentais, privilegiando negócios periféricos com parceiros irrelevantes, cujo
traço comum era seu feroz antiamericanismo. Esse terceiro-mundismo militante da
diplomacia lulopetista atravancou a inserção internacional do País.
Mesmo políticas mais ou menos
social-democratas adotadas internamente foram renegadas no plano internacional
pelo alinhamento doutrinário com tiranias socialistas, que prejudicou a
integração do Mercosul e produziu episódios lamentáveis, como a conivência com
a invasão de uma instalação da Petrobras na Bolívia, em 2006, ordenada pelo
então presidente Evo Morales, amigão de Lula.
Paradoxalmente, do ponto de vista de
política externa, a pauta mais importante que os partidos políticos poderiam
oferecer é justamente a despartidarização da diplomacia. Por antagônicos que
sejam, o lulopetismo e o bolsonarismo compartilham do mesmo apetite por
submetê-la aos seus interesses ideológicos. Em um aspecto o resultado foi
idêntico: a degradação da isonomia e do profissionalismo da Casa de Rio Branco,
a começar pela escassez orçamentária precipitada pela irresponsabilidade fiscal
de ambos. Nem um nem outro foram capazes de promover – ao contrário,
obstinaram-se em perverter – os princípios da diplomacia nacional definidos
pelo Conselho do Império e corporificados na Constituição de 88: “Inteligente
sem vaidade, franca sem indiscrição, enérgica sem arrogância”.
Embaixada não é sinecura
O Estado de S. Paulo
Por que tanta pressa em avançar com a PEC 34/2021? A diplomacia do País não pode ser submetida a veleidades pessoais
O senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP)
tem demonstrado notável empenho para fazer avançar uma Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) de sua autoria que só interessa aos parlamentares, não à
sociedade e muito menos ao Estado brasileiro. Trata-se da PEC 34/2021, que
autoriza a nomeação de deputados e senadores para cargos de chefia de missões
diplomáticas permanentes, como embaixadas, sem que, para isso, tenham de
renunciar ao mandato, como sói acontecer em diversos países e é regra no Brasil
há 85 anos.
Ainda estão por ser desvelados todos os
interesses e beneficiários por trás da tramitação da PEC 34/2021, que nem
remotamente se aproxima das prioridades do País. Mas chama a atenção o afinco
do senador amapaense. No dia 6 passado, Alcolumbre, na condição de presidente
da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, tentou colocar a PEC
34/2021 em votação no colegiado. Só não conseguiu realizar a manobra às pressas
porque houve um pedido de vista coletiva após pressões de outros senadores, o
que levou ao adiamento da votação da proposta para agosto, após o recesso
parlamentar.
Mas o dia não foi só de reveses para
Alcolumbre. Ele conseguiu que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG),
assumisse publicamente que vai “analisar o mérito da proposta” e, “caso seja a
vontade da maioria dos líderes” na Casa, o tema será levado ao plenário. É
estranha a manifestação do presidente do Senado. Como jurista, Pacheco deveria
ser o primeiro a saber que a PEC 34/2021 nem deveria sair do âmbito da CCJ, pois
se trata de uma flagrante violação de cláusula pétrea da Constituição, a
separação de Poderes, como bem salientou em nota o Ministério das Relações
Exteriores.
Como já tivemos oportunidade de enfatizar
neste espaço (ver o editorial Politicagem na política externa, 29/6/2022), a PEC 34/2021 tem
potencial para achincalhar a história mais que centenária do Itamaraty e
apequenar o corpo diplomático brasileiro, tido como um dos mais bem preparados
e respeitados do mundo. Não se pode contaminar a execução da política externa
do País com interesses miúdos, próprios do varejo da política doméstica. Ao fim
e ao cabo, o que se pretende com essa proposta indecente é transformar algumas
embaixadas do Brasil no exterior – só as mais nobres, evidentemente – em moedas
de troca na negociação política entre os Poderes Executivo e Legislativo.
Embaixadas não são sinecuras para
parlamentares que apoiam o governo de turno. Devem ser chefiadas por diplomatas
de carreira, preferencialmente, ou por cidadãos altamente qualificados que
tenham liberdade para executar a política externa tendo como norte,
exclusivamente, o interesse nacional.
A PEC 34/2021 é um despautério, a começar
pelo fato de agredir uma cláusula pétrea da Constituição. Tudo mais deriva
desse vício fundamental. A representação diplomática do Brasil não pode ser
reduzida a objeto de barganha política. Os interesses do País no exterior, que
são perenes, não podem ser sobrepostos por veleidades pessoais.
Amazônia virou eldorado para todo tipo de
crime
O Globo
Dominada por facções, região registra taxas
de assassinatos superiores à média nacional
Os assassinatos do indigenista Bruno
Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips no Vale do Javari chamaram a
atenção do mundo para a violência na Amazônia. Ficou claro que a criminalidade
local não se reflete apenas nos garimpos clandestinos, na extração ilegal de
madeira, na pesca predatória ou na grilagem de terras. Está também nas
quadrilhas de narcotraficantes incrustadas na mata, na guerra de facções e
criminosos de todo tipo que se aproveitam do vácuo do Estado para barbarizar.
Esse cenário de anomia foi traduzido em
números pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, que trata a Amazônia
como “síntese da violência extrema”. Atuam na região mais de duas dezenas de
organizações criminosas regionais e pelo menos duas de abrangência nacional (ou
até internacional), uma do Rio e outra de São Paulo. Tais facções disputam as
cobiçadas rotas internacionais do tráfico de drogas, empreendendo guerras
sangrentas, com impacto forte nos índices de violência da região e do país.
Os números são claros. As mortes violentas
intencionais — categoria que inclui homicídios dolosos, latrocínios, lesões
fatais e mortes por policiais — na Amazônia são 38,6% superiores à média
nacional (30,9 ante 22,3 por 100 mil habitantes). Enquanto, no Brasil, a taxa
caiu 6,5% em 2021, nos estados da Região Norte, que integram a Amazônia Legal,
ela aumentou 7,9%.
Das 30 cidades brasileiras com índices
superiores a cem mortes por 100 mil habitantes, um terço está na Amazônia. Uma
delas é Jacareacanga, no Pará, com apenas 7 mil moradores e taxa de 199,2 (no
país, só não é mais violenta que São João do Jaguaribe, no Ceará, com 224 por
100 mil). Quase todos esses municípios estão perto de áreas indígenas,
demonstração da vulnerabilidade desses povos ao crime.
Na descrição do Anuário, a Amazônia “parece
dominada pela lógica dos grupos armados criminosos” e, apesar do aparato de
segurança existente, quem dá as cartas é o crime organizado, “que vai
corrompendo e ocupando a economia, a política e o cotidiano da região”. Os
pesquisadores não usam meias palavras para traduzir o descalabro: “Os
principais grupos criminosos atuam como síndicos da Amazônia”.
É verdade que a migração do crime para a
Amazônia não começou agora, mas não há dúvida de que a leniência do governo
Jair Bolsonaro agravou a situação. No ano passado, quando o superintendente da
PF no Amazonas, Alexandre Saraiva, acusou o então ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, de atrapalhar as investigações sobre uma apreensão recorde de
madeira ilegal, Bolsonaro mandou exonerar Saraiva. Deixou claro de que lado
estava.
O assassinato de Bruno e Dom é reflexo
desse vale-tudo. A tragédia estava mais que anunciada, até na forma de bilhetes
com ameaças. Um colaborador da Fundação Nacional do Índio (Funai) já fora
executado em circunstâncias semelhantes. Em entrevista ao GLOBO, um indigenista
fez a pergunta perturbadora: “Qual o próximo colega que vamos enterrar?”.
Proteger a Amazônia de todas as formas de
crime não é tarefa fácil, mas se torna mais difícil se não há vontade para
isso. Se realmente estivesse preocupado com a soberania da região, o governo
deveria agir logo, porque, como os números demonstram de forma inequívoca, o
Estado já não tem o controle da floresta. Pior: não adianta nem chamar o
síndico.
Choque entre Fernández e Cristina agrava perspectivas
na Argentina
O Globo
Conflito entre presidente e vice derruba
ministro da Economia e traz mau presságio para eleição de 2023
Desde o início do governo, em dezembro de
2019, o presidente argentino, Alberto Fernández, enfrenta dificuldades com a
vice, a ex-presidente Cristina Kirchner. Embora ambos tenham origem no
peronismo, Cristina pertence a uma corrente de pedigree mais populista, como
deixaram claros seus dois mandatos e a influência que manteve na gestão
anterior do marido, Néstor Kirchner. Numa tentativa de recobrar o protagonismo
de outrora, ela transformou a economia e as políticas sociais em um campo de
batalha contra Fernández.
As desavenças entre Cristina e Fernández se
aguçaram com a derrota nas eleições legislativas de 2021, que ela credita a
Fernández e à equipe econômica. A crise desembocou na renúncia do ministro da
Economia, Martín Guzmán, no início do mês. Guzmán, de perfil bem distante
daquilo que a esquerda costuma tachar de “neoliberal”, vinha tentando junto a
Fernández a aprovação, entre outras medidas, de um aumento de tarifas de
serviços públicos para reduzir subsídios que pesam nas contas do Tesouro.
A grande preocupação dos argentinos é a
inflação, que já atingiu 60% nos últimos doze meses. Fernández hesitava em dar
resposta às demandas de Guzmán para tentar reconquistar algum apoio entre
aliados de Cristina. Até que o ministro resolveu sair. É tão grande o distanciamento
entre presidente e vice que o telefonema entre os dois para escolher o
substituto do ministro foi mediado por Estela de Carlotto, líder das Avós da
Praça de Maio. No lugar de Guzmán entrou a economista Silvina Batakiz, do
círculo de Cristina. Com o Ministério da Economia nas mãos de alguém próximo à
vice, estão dadas as condições para novos embates políticos, com repercussão
nos mercados e numa economia em derretimento.
A Argentina é conhecida pelas aventuras na
política econômica. Costuma se esquivar do uso clássico das políticas fiscal e
monetária apostando no sucesso passageiro das heterodoxias. Volta e meia é
forçada a cair na realidade. Organismos internacionais como o Fundo Monetário
Internacional (FMI) exercitam uma leniência peculiar com os sucessivos calotes
argentinos em suas dívidas externas. Depois da última renegociação, estava
aberta a oportunidade para o país se reerguer, mas as gestões peronistas
parecem fazer de tudo para manter a Argentina na rota de sua proverbial
decadência.
O necessário consenso mínimo sobre um plano econômico sustentável é difícil numa Argentina em que os kirchneristas insistem em implantar um “salário básico universal” sem haver condições fiscais para isso. O espaço para entendimento entre Fernández e Cristina é estreito, e os dois ostentam elevados índices de rejeição — ela com desaprovação de 63% e o governo de Fernández, de 75%. As eleições presidenciais do ano que vem abrem mais uma oportunidade para os argentinos fazerem uma escolha sensata. Enquanto isso, a coabitação difícil entre Fernández e Cristina traz mau presságio para a economia.
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