terça-feira, 23 de agosto de 2022

Pedro Cafardo - As novas ‘missões’ de um Estado planejador

Valor Econômico

Planejamento, palavra maldita, precisa voltar à discussão

Quase um ano atrás, apontamos aqui alguns temas básicos na área da economia que exigiriam definições claras dos candidatos à sucessão presidencial, entre eles o teto de gastos, a reforma tributária e a emergência ambiental.

Agora que a campanha começou, chegou a hora de aprofundar a discussão. Já está claro que o teto de gastos, seja quem for o eleito, está com os dias contados e terá de ser substituído por outro mecanismo. Ele é uma trava ao crescimento e já foi desmoralizado seguidas vezes.

Forma-se também um quase consenso a favor de uma reforma tributária que aumente mais a taxação sobre impostos diretos, como o Imposto de Renda, e menos a dos indiretos, que atingem principalmente os pobres. Existe entendimento ainda a respeito da necessidade de taxação de dividendos.

Não há discordância entre os candidatos, exceto para negacionistas, sobre a obrigatoriedade da formulação de uma nova política ambiental, que retire o país da vergonhosa posição em que se colocou no cenário internacional.

Os temas citados acima, além do combate à fome, pobreza e desigualdade, praticamente deixaram de ser polêmicos. Mas eles se referem a problemas emergenciais da vida brasileira. Sua solução temporária pode se dar com remédios paliativos, que atenuem apenas os sintomas da enfermidade. Se de fato pretendem curar a doença brasileira, que se chama estagnação e já dura quatro décadas, os candidatos precisam aprofundar as propostas.

Em português claro, cabe uma pergunta aos candidatos e seus assessores: vocês vão manter os princípios neoliberais do Estado mínimo, da austeridade fiscal rigorosa, das privatizações, em resumo, da ideia de que o livre mercado pode levar o país ao desenvolvimento? Ou vão apostar na ação do Estado como indutor do desenvolvimento, com todas as implicações que essa aposta pode trazer?

Em seu livro “Estado & Desenvolvimento”, lançado no mês passado pela Editora de Cultura, o jornalista e escritor Fausto Oliveira aborda esse tema de forma didática e com viés progressista. Sugere que “é preciso construir uma nova ideia de Estado desenvolvimentista e deixar para trás a velha polêmica de que a presença estatal na economia é prejudicial - coisa de comunista”. Oliveira propõe a colaboração entre Estado planejador e empresas privadas.

O ideário liberal, segundo o autor, não é inteiramente descartado na visão desenvolvimentista contemporânea, que caminha para um equilíbrio entre funções do Estado e do mercado. É algo diferente da visão liberal atual, que propõe reformas, austeridade fiscal e encolhimento do Estado, considerado um estorvo.

Trata-se, portanto, de reintroduzir nas discussões dos aspirantes à Presidência, além dos problemas emergenciais, uma palavra que se tornou maldita na era neoliberal: planejamento. O Estado desenvolvimentista, com foco no planejamento de médio e longo prazo, observa Oliveira, não é experiência necessariamente autoritária. Essa conotação, comumente difundida por alguns debatedores liberais, se deve a conclusões apressadas, baseadas em processos de desenvolvimento estabelecidos em certos países de regime autoritário.

Setores empresariais, colonizados há décadas pelas ideias neoliberais defendidas pelo setor financeiro, se dão conta de que o processo de desindustrialização e estagnação não será revertido sem a volta do Estado planejador.

No curto manifesto “Em defesa da democracia e da justiça”, liderado pela Fiesp e assinado por 107 entidades, a palavra desenvolvimento aparece três vezes. Carta enviada a candidatos à Presidência por industriais de refrigeração, ventilação e aquecimento (Abrava-Sindipar) sugere que o próximo governo terá de propor um “projeto de país”. Empresários da Abdib (setores de infraestrutura e de base) propõem que o país precisa de programa estratégico de desenvolvimento que transcenda a participação da iniciativa privada, com maior presença do Estado. “Não existe país que tenha só a iniciativa privada tocando projetos em transporte e logística (...) e o BNDES tem que ser uma instituição de fomento como já foi no passado”, disse a “O Estado de S. Paulo” o presidente da Abdib, Vanilton Tadini.

No governo atual, que encolheu o BNDES, até o Ministério do Planejamento foi extinto, na suposição de que o setor privado, guiado pelo mercado, pode direcionar o crescimento e enriquecer o país.

Que o Brasil precisa de um novo ciclo de industrialização, isso não se discute. Mas como seria esse ciclo? Fausto Oliveira observa que não bastará reativar certas indústrias do passado. Será necessário buscar inserção em novas tecnologias para adentrar novos setores e novas cadeias de comércio internacional.

O Estado desenvolvimentista contemporâneo, segundo Oliveira, deve ter como objetivo a formação de redes produtivas complexas em seus territórios. E a maneira que vem sendo concebida para a realização desse novo trabalho é o conceito de “missão”. As “missões” seriam projetos específicos, flexíveis e múltiplos, que comportem grande variedade de agentes públicos e privados, além de científicos, educacionais, sociais e financeiros.

Uma das missões seria instalar uma neoindústria biológica assentada sobre os biomas Amazônia, Cerrado, Pantanal e Semiárido. Outra buscaria a substituição das importações do agronegócio, de equipamentos, química e sistemas de controle (satélites, drones etc.). Outra seria a indústria aeroespacial, a partir do polo de São José dos Campos. Outra, ainda, surgiria no setor das tecnologias de eletrificação, porque o país ainda tem boa produção de motores elétricos, transformadores, baterias e outros equipamentos. Oliveira cita também indústrias da defesa, farmacêutica e saúde.

O lançamento dessas “missões” depende da ação do Estado planejador. Não dá para deixar a tarefa apenas com o setor privado, principalmente do capital estrangeiro. Sobre isso, vale lembrar uma declaração feita ao Valor no ano passado pelo economista americano L. Randall Wray, ao ser indagado sobre seu apoio à volta do planejamento. “Toda economia é planejada. A questão é quem planeja e quem se beneficia”. E o planejamento em geral não está nas mãos dos representantes eleitos. Uma vez empossados, eles o entregam a Wall Street, nos EUA, e à Faria Lima, no Brasil.

 

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