O Estado de S. Paulo
O sol há de brilhar mais uma vez / A luz há de chegar aos corações / Do mal será queimada a semente / O amor será eterno novamente. / É o juízo final / A história do bem e do mal. / Quero ter olhos para ver / A maldade desaparecer. (‘Juízo Final’, de Élcio Soares e Nelson Cavaquinho).
É hora de pensar no depois de amanhã, quando o jogo não será mais do palanque, das ideias simplistas, da recordação dos tempos felizes
Foi uma campanha curta. Pouco
esclarecedora. Nenhum debate de ideias acendeu o interesse dos eleitores.
Mobilizaram-se o simbólico e o afetivo: ganhar o emocional do eleitor, afastar
rejeições, valorizar a fé, a paz e o amor, defender a família, ter esperança,
repor a alegria. Houve mais memes e vídeos nas redes do que propostas. A
polarização entre Lula e Bolsonaro ocupou o centro do palco. Não houve espaço
para outras candidaturas crescerem.
Apesar disso, a campanha teve o que
importa: decidir se o País seguirá com um governo que nos leva para o
precipício ou se mudará de rota, reencontrando-se com a civilidade e a
governança democrática.
A esta altura, faltando uma semana para as
urnas, tudo indica que Lula será o próximo presidente da República. Isso
acontecerá com ou sem segundo turno.
A maioria dos brasileiros está repudiando um presidente que, em quatro anos, nada apresentou de positivo. Bolsonaro conseguiu ser, simultaneamente, autoritário, insensível, incompetente, grosseiro, medíocre, racista e misógino. Passou uma patética imagem de governante. Não enfrentou a pandemia. Agrediu sistematicamente as mulheres. Desmontou a Educação. Atacou as universidades, os intelectuais, os artistas, os jornalistas. Flertou descaradamente com a violência. Instrumentalizou as Forças Armadas. Manteve-se em sintonia com esquemas sórdidos de corrupção. Confrontou o Judiciário. Envergonhou o País e dilapidou sua imagem internacional.
Sua folha de serviços contrários à
democracia é assustadora. Bolsonaro está sendo derrotado por ela.
Lula vencerá porque a sociedade não quer a
continuidade do bolsonarismo. Será uma vitória mais social do que política: uma
imposição da realidade, não uma construção política. Por isso, o que virá além
é mais importante do que o veredicto das urnas.
Nada cairá do céu. Para que haja um governo
democrático a partir de 2023, será preciso que alguém o produza: organize uma
agenda de prioridades e articule um bloco de forças para cumpri-la.
Nas condições atuais, esse ator não poderá
ser uma pessoa nem mesmo um partido. Terá de contar com algo que não temos tido
nas últimas décadas: uma unidade programática de forças democráticas. Precisará
de apoios que não estão dados de antemão e terão de ser construídos.
Porque os desafios são enormes e nenhuma
corrente política os vencerá sem cooperação e esforços de muitos. O País está
carecendo de iniciativas que colem seus pedaços e promovam um processo de
pacificação nacional e de reacomodação política. Não conseguirá avançar se
continuarem a se repor os velhos embates entre “nós” e “eles”, “povo” e
“elite”, socialdemocratas e liberais democratas. Se prosseguirem as disputas
para saber quem é mais amigo dos pobres, mais ligado ao mercado, mais
fiscalista ou mais desenvolvimentista. Temos de encontrar um ponto de
convergência para superar essas divisões que nos empurram para o buraco. Nada
será resolvido com conversas de bastidores ou repartição de cargos. O desafio é
programático.
A hora é de pensar grande, pular o muro das
maquinações partidárias e das ideologias.
O que nos aguarda mais à frente é puro
desafio. A agenda está dada: política ambiental, desenvolvimento sustentável,
fim da fome, redução da desigualdade e das disparidades regionais, emprego e
renda, educação, saúde e segurança, recuperação dos sistemas básicos de gestão
destruídos pelo bolsonarismo, a começar do Orçamento, política externa ativa e
cooperativa, reforma tributária, correção da parafernália partidária,
qualificação da classe política, compostura presidencial, revalorização do
Executivo.
As condições de possibilidade dessa agenda
passam pelo estabelecimento de um compromisso democrático reformador de longo
prazo.
O PT não conseguirá avançar sozinho. Ter
Alckmin a seu lado é bom, mas não é suficiente. O partido não poderá ceder aos
primeiros acenos do Centrão, que virão muito antes do que se imagina. Terá de
perder a autossuficiência: construir consensos, fazer alianças coerentes. Atuar
mais preocupado com reformar o País do que com se fortalecer para as próximas
eleições. Negociar com os democratas, não com o mercado. Sem isso, não sairemos
do inferno político em que temos vivido.
É hora, portanto, de olhar para a frente,
pensar no depois de amanhã, quando o jogo não será mais do palanque, das ideias
simplistas, da recordação dos tempos felizes. Na encruzilhada em que nos
metemos, não há como dizer que a maldade desaparecerá.
A recuperação democrática do País é uma
perspectiva estratégica de longo prazo. Suas chances de sucesso dependem do
quanto os democratas souberam atender a uma exigência de renovação que
ultrapassa as divisões políticas, as batalhas identitárias e as disputas
eleitorais.
*Professor titular de teoria política da Unesp
3 comentários:
A maldade desaparecer = O bolsonarismo desaparecer! Pro sol brilhar novamente...
Fora genocidaaaaa!!!a
Ótima análise,estamos na torcida.
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