O Estado de S. Paulo
Nada justifica, diante do texto constitucional e da experiência histórica, o entendimento de que elas sejam um Poder Moderador
Ao responder, no Jornal Nacional, da TV
Globo, ao comentário de que seus correligionários, sem sua contestação, defendiam
em manifestações o fechamento do Congresso Nacional e a intervenção militar,
Jair Bolsonaro mencionou o artigo 142 da Constituição. A resposta ficou pelo
meio. Com efeito, todavia, o presidente referia-se à posição de poucos juristas
no sentido de que esse artigo autoriza as Forças Armadas a agir como Poder
Moderador, como um Poder acima dos demais, no caso de conflito entre Poderes.
Resta saber se se pretende referir ao Poder
Moderador consagrado ao imperador pela Constituição de 1824 ou se se usa o termo
no seu sentido literal, como órgão de conciliação entre os Poderes.
Em golpe de Estado, Dom Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte, que a seu ver não elaborava texto digno dele. O Conselho de Estado, nomeado para, então, elaborar a Constituição, instituiu um quarto poder, o Poder Moderador, criando a figura de rei que reina, governa e administra.
O artigo 98 da Constituição atribuía ampla
competência ao chefe de Estado, mais larga que a de um presidente do
presidencialismo parlamentarizado, pois o imperador podia interferir no
processo legislativo, nomear e destituir ministros, dissolver a Câmara dos
Deputados, prorrogar seus trabalhos, designar senadores e presidentes de
província.
Por isso denominava-se o sistema de governo
adotado de parlamentarismo às avessas. Ao poder imperial concederam-se
inviolabilidade e irresponsabilidade.
Não se pode confundir este Poder Imperial
com a pretensa intervenção das Forças Armadas em eventual conflito entre
Poderes. Seria, então, o Poder Moderador a capacidade de conciliação das Forças
Armadas?
Os oficiais do Exército, sob a orientação
do recém-fundado Clube Militar, dirigido por Benjamin Constant, decretaram a
República. Iniciou-se o período republicano com o chamado regime da espada,
especialmente sob Floriano Peixoto, que impôs prisão e desterro a seus
opositores.
O militarismo do primeiro mandato
presidencial retornou com o sobrinho de Floriano Peixoto, o presidente Marechal
Hermes da Fonseca. Entre as instituições militares e o militarismo, dizia Ruy
Barbosa, vai, em substância, o abismo de uma contradição radical. O
militarismo, o governo da Nação pela espada, arruína as instituições militares,
a subalternidade legal da espada à Nação.
A intensa intervenção das Forças Armadas,
na primeira República, expressa-se nas revoluções de 1922, de 1924 e na de
1930, a qual, após os primeiros dias da revolta, contou com total apoio do
Exército.
O golpe de 10 de novembro de 1937,
instituindo o Estado Novo, teve a participação do Exército, como bem relata
Hélio Silva, sendo a ditadura acordada entre Getúlio e o então ministro da
Guerra, Eurico Dutra.
Como se vê, as Forças Armadas foram
protagonistas da cena política em situação de comando e de substituição dos
quadros civis na condução do País, impondo limitações à liberdade, o que
alcançou o clímax na ditadura de 1964 e, especialmente, após 1968, com o Ato
Institucional n.º 5 e a consagração da ideologia da segurança nacional.
Assim, pode-se verificar a interferência,
ao longo da História, das Forças Armadas no processo político em episódios de
confronto, e jamais de conciliação, substituindo-se à sociedade politicamente
organizada para ditar de cima para baixo o certo e o errado, inclusive no plano
dos costumes. A História não indica que as Forças Armadas tenham experiência de
moderação – ao contrário.
O já referido artigo 142 da Constituição
ficou, depois de debate que acompanhei na condição de assessor especial da
presidência da Constituinte, assim redigido: “Artigo 142: As Forças Armadas,
constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições
nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na
disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se
à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer destes, da lei e da ordem.”
No primeiro substitutivo do relator,
editava-se que as Forças Armadas se destinam “à garantia dos Poderes
constitucionais e por iniciativa expressa destes da ordem constitucional”.
Poderiam, portanto, intervir para garantia tão somente da ordem constitucional,
e não da ordem simplesmente. Após reunião entre o relator da Constituinte e os
relatores adjuntos com o presidente Sarney e o ministro da Guerra, ficou
acordado que poderia haver atuação das Forças Armadas para garantia da ordem e
da lei, mas por iniciativa de qualquer dos Poderes.
Submetem-se as Forças Armadas ao poder
político, podendo agir para a manutenção da ordem e da lei apenas quando
convocadas por iniciativa de um dos Poderes constitucionais. Não são as Forças
Armadas, de conseguinte, um poder, malgrado a relevância de garantes da ordem
constitucional, pois subalternas ao comando político da Nação.
Nada justifica, portanto, diante do texto
constitucional e da experiência histórica, o entendimento de que as Forças Armadas
sejam um Poder Moderador.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça.
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