Valor Econômico / Eu Fim de Semana
É curioso o empenho político em trazer ao
país o órgão do imperador
Foi Dom Pedro IV, de Portugal, quem doou o
próprio coração, em testamento, à Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, da cidade
do Porto. Não foi Dom Pedro I, do Brasil. Embora os dois reis, do ponto de
vista vulgar, sejam a mesma pessoa biológica, não são, sociologicamente, a
mesma pessoa política e histórica. Cada qual personificou um mandato e um
destino. Dom Pedro IV foi um rei de Portugal e dos portugueses. Dom Pedro I
fora um monarca do Brasil e dos brasileiros.
Os reis nunca são eles mesmos nem o que
achamos que são. A rainha Elizabeth II é rainha da Inglaterra e da Escócia. São
dois tronos e dois reinos distintos. Na Inglaterra, ela é anglicana e cabeça da
Igreja Anglicana. Na Escócia, ela é presbiteriana, cabeça simbólica da Igreja
Escocesa, cuja origem vem de John Knox, braço direito de Calvino e fundador do
presbiterianismo.
Quando na Inglaterra, nas celebrações
religiosas, ela segue o rito anglicano. Quando na Escócia, nessas celebrações,
segue o rito do protestantismo escocês. Na Escócia, formalmente, está ligada a
uma igreja de estrutura e de espírito republicanos.
As circunstâncias históricas e políticas dizem o que são e podem ser os reis nos diferentes momentos e épocas de sua vida. O pai de Dom Pedro, o rei Dom João VI, que foi rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, a partir de 1815, quando o criou, foi um desses casos. Pagou com a vida o fato histórico de que a unidade dinástica sobre dois territórios, Portugal e Brasil, pressuposta nessa decisão, antecipava uma possibilidade política em dois países politicamente atrasados. Homem de grande lucidez política, do estadista que era, ele acabou assassinado por envenenamento em 1826.
Dom Pedro IV quis, ao legar seu coração à
cidade do Porto, expressar a ela seu reconhecimento e sua gratidão pelo apoio
que dela recebera na Revolução Liberal para vencer seu irmão Dom Miguel. O
qual, em nome do absolutismo, usurpara o trono de sua sobrinha, Dona Maria II.
Dom Pedro subirá ao trono de Portugal por uma semana, para restituí-lo à filha.
O lugar do coração de Dom Pedro é na
capela-mor da Igreja da Lapa, onde sempre esteve, à qual ele ia diariamente, a
pé, quando morou no Porto. Ele era catolicíssimo, compositor de talento
reconhecido, compôs solenes e belas músicas religiosas, como o “Credo”. Fora
aluno de música de Marcos Portugal e, aqui no Brasil, também do padre José
Maurício, mulato de grande cultura musical.
Curioso o empenho em trazer ao Brasil, em
macabra procissão aérea, o coração do imperador. Curiosa porque o corpo do
imperador, e os corpos das duas imperatrizes, Leopoldina e Amélia, estão há
muito sepultados na cripta do Monumento à Independência, ao pé da colina do
Ipiranga. Onde foi proclamado o segundo ato da independência do Brasil em
relação a Portugal.
O primeiro ato fora proclamado duas horas
antes à margem do antigo rio Tamanduateí, atual rio dos Meninos, na divisa de
São Caetano com São Bernardo. Foi quando o padre Belchior, confidente do
príncipe regente, que com ele estava, leu-lhe as primeiras cartas trazidas pelo
segundo emissário enviado pela princesa e por José Bonifácio comunicando-lhe a
ordem vinda das cortes de Lisboa para que retornasse ao reino. As informações
secretas a ele enviadas na mesma ocasião pelo cônsul inglês no Rio,
Chamberlain, que as recebera de sua embaixada em Portugal, alertavam-no para a
conspiração contra ele no Reino, cujo intuito era o de destituí-lo do direito
de sucessão ao trono.
O coração real, desabrigado do nicho
sagrado da igreja do Porto, ficará exposto nos recintos profanos do Palácio do
Planalto e, depois, do Ministério das Relações Exteriores à curiosidade mórbida
das multidões pós-modernas.
Num momento em que o país está mergulhado
no vale-tudo de uma campanha eleitoral cheia de incertezas quanto ao futuro do
Brasil, disseminadas pelo próprio anfitrião, é pouco provável que o governo
possa garantir a todos os cidadãos que não se trata de um recurso para
converter o antigo imperador em cabo eleitoral do presidente-candidato.
O fato de que a esdrúxula ideia da trazida
do coração do rei, justo nesta hora, tenha partido de uma candidata paulista a
deputada federal pela mesma frente partidária do governante e que tenha sido ela
autora dos primeiros contatos e providências para que o ato fúnebre fosse
concretizado, sugere falta de decoro quanto a intenções outras por trás do
traslado. Uma violência simbólica contra o desejo de Dom Pedro IV e contra o
alto significado do gesto do príncipe regente que naquela tarde de sábado, 7 de
setembro de 1822, com sua proclamação, fundou a pátria brasileira para servi-la
e não para servir-se dela.
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