sábado, 10 de setembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Violência exige repúdio firme dos candidatos

O Globo

Em vez de insuflar ódio, Bolsonaro e Lula têm o dever de condenar atos bárbaros e pregar campanha pacífica

Mais um assassinato por clara motivação política na campanha eleitoral soa o alarme para o maior risco da polarização que divide a sociedade brasileira: a violência. A barbárie, primeiro nos tiros em Foz do Iguaçu, agora no esfaqueamento hediondo no interior de Mato Grosso, exige repúdio firme de todos os candidatos, na busca de um ambiente pacífico para o pleito. É intolerável a perpetuação do clima de ódio que contribui para transformar palavras de divergência em atos de agressão, disputas políticas em brigas e morte.

Embora as vítimas de ambas as tragédias tenham sido partidários do PT, a agressividade não está restrita a apenas um lado do espectro ideológico. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro promove o culto às armas e afirma, em discurso no 7 de Setembro, que a esquerda “tem que ser extirpada da vida pública”, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva compara manifestantes bolsonaristas à odiosa organização racista Ku Klux Klan. Nada disso traz sensatez. Pelo contrário, são palavras que contribuem para inflamar os ânimos, quando o necessário é apaziguá-los.

Um levantamento da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) verificou que a violência política já fez 40 mortos no país desde janeiro. Entre ameaças, agressões, tiroteios, homicídios, sequestros e atentados, o estudo contou ao todo 223 episódios. É verdade que são eventos isolados, que não refletem o sentimento da maioria do eleitorado, seja o petista, seja o bolsonarista. Um outro levantamento, feito pela empresa Quaest para uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), verificou que mais de três em quatro eleitores consideram a violência injustificável em caso de vitória do grupo adversário. Mas, justamente por confrontar a ampla maioria, é preocupante a pequena parcela dos que consideram a violência “justificada” em alguma medida (21% dos eleitores de Lula; 19% dos de Bolsonaro).

Ao longo da História, as tragédias provocadas pelo choque de grupos rivais violentos — mesmo que minoritários — acabaram por sufocar a maioria moderada e serviram de pretexto para autocratas reivindicarem poderes emergenciais, acabando com a democracia. “Nenhuma lição no estudo das rupturas democráticas é mais clara que o papel dos líderes políticos ao alimentar — ou conter — a polarização política e o extremismo”, escreveram no site Politico cientistas políticos preocupados com o risco nos Estados Unidos, antes da eleição de 2020. “Líderes desempenham um papel essencial ao alimentar o fogo ou extinguir as chamas da violência entre seus seguidores.” Um ano depois, a horda inflamada por Donald Trump invadiu o Capitólio.

É essencial, por tudo isso, que os líderes políticos brasileiros levem a sério a ameaça de radicalização e agravamento da situação. Todos — em especial os antagonistas Bolsonaro e Lula — têm o dever de condenar com firmeza e de modo inequívoco qualquer ato violento, como os crimes bárbaros de Foz do Iguaçu e Mato Grosso. Também devem disseminar entre seus partidários a única mensagem democrática aceitável: qualquer forma de violência é inadmissível, tem de ser combatida e punida. Não devem ser lenientes com partidários fanáticos que se mostrarem violentos. Ao contrário, precisam repudiá-los sem meias palavras. Por fim, devem ser claros ao afirmar que respeitarão o resultado das urnas eletrônicas, quem quer que seja o vencedor.

Resultado vergonhoso do Brasil no IDH é responsabilidade de Bolsonaro

O Globo

Próximo governo tem o desafio de recuperar posição no indicador da ONU que mede o desenvolvimento

O Relatório de Desenvolvimento Humano, divulgado nesta semana pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), recebeu um título que traduz a realidade mundial: “Tempos incertos, vidas instáveis”. Não há dúvida sobre o período de incerteza e instabilidade que vivemos. O texto traz a última leitura do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), uma medida de três dimensões básicas: renda, educação e saúde.

Pela primeira vez desde que foi criado, em 1990, o IDH global, empurrado pela pandemia, deu marcha à ré — e por dois anos consecutivos. No retrocesso planetário, o Brasil conseguiu ter um resultado ainda pior. O IDH global voltou ao nível de 2016. O brasileiro, ao de 2014. Em outras palavras, a incompetência do atual governo supera a média dos outros países.

No ranking do IDH, o país recuou uma posição para o vexaminoso 87º lugar entre 191 nações. Fomos ultrapassados pela China e continuamos atrás de vizinhos como Chile, Argentina, Uruguai, Peru e México. Melhorar a posição brasileira no indicador é um tema que deve ser prioridade na agenda do próximo presidente da República.

A área que mais contribuiu para rebaixar a avaliação do país foi a saúde. Em todo o mundo, as mortes provocadas pelo coronavírus reduziram a expectativa de vida em 1,6 ano. Por aqui a queda foi maior, de 2,5 anos. O Brasil é o segundo país com o maior número absoluto de mortes por Covid-19, oficialmente com mais de 680 mil, atrás apenas dos Estados Unidos. Em termos relativos, também passamos vergonha — com perto de 3.200 por milhão de habitantes, só ficamos atrás de 16 países numa relação de 225. Agora em 72,8 anos, nossa expectativa de vida voltou ao patamar de 2008.

A comparação internacional torna evidente o “fator Bolsonaro” no desempenho brasileiro. O presidente fez pouco-caso da pandemia, foi lento na compra de vacinas e alimentou o negacionismo. Mesmo hoje se recusa a fazer uma avaliação realista das falhas de seu governo. Continua criticando a política de isolamento que salvou milhares de vidas nos momentos mais críticos da pandemia.

O próximo governo também terá diante de si a tarefa árdua de recuperar a educação. Os dados do IDH nessa área parecem não captar a dimensão das perdas nos longos períodos em que as escolas ficaram fechadas — tristemente, o Brasil foi um dos recordistas também nesse quesito. Os programas destinados a preencher as lacunas têm apresentado desempenho irregular. É essencial a coordenação por parte do Ministério da Educação. Caso nada de vulto seja feito, poucos estados e municípios atingirão as metas, enquanto a maioria ficará para trás.

Que ninguém se iluda: se as políticas de saúde e educação não forem levadas a sério, o desempenho do Brasil no IDH continuará sendo uma vergonha, prova da precariedade dos serviços prestados pelo Estado ao cidadão.

Temores eleitorais

Folha de S. Paulo

Multiplicação de armas e tensões políticas justificam cuidados contra violência

De 2018 até julho deste ano, cresceu em 187% no país o número de armas de fogo nas mãos de caçadores, atiradores e colecionadores (os chamados CACs), categoria beneficiada pelo afrouxamento do Estatuto do Desarmamento por meio de decretos presidenciais editados por Jair Bolsonaro (PL).

Há 1 milhão de artefatos apenas nas mãos desse grupo, o que eleva os temores quanto a degeneração da polarização política em violência física —o que pode acontecer mesmo sem pistolas ou revólveres, como se viu nesta sexta (9) com o assassinato à faca, segundo a polícia, de um petista por um bolsonarista em Confresa (MT).

Deve-se levar em consideração, além do número de produtos em circulação, a fragilidade do monitoramento de armas e munições a cargo do Exército e da Polícia Federal, além da retórica belicosa do mandatário maior da nação.

Dados do Observatório da Violência Política e Eleitoral (Giel/Unirio) apontam um aumento de 23% nos casos de violência contra lideranças políticas ante 2020. Foram 214 no primeiro semestre deste 2022, para 174 no mesmo período de dois anos atrás, quando se realizaram eleições municipais.

Às vésperas do 7 de Setembro, de forma monocrática, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, restringiu o número de armas e munições que podem ser adquiridas por CACs, antevendo mais casos de violência —como outro assassinato de petista por bolsonarista, em Foz do Iguaçu (PR), em julho deste ano.

A decisão, por defensável que seja, deveria caber ao plenário do STF. Isso não se dá porque o ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, travou o julgamento dos decretos de constitucionalidade mais que duvidosa por meio de um pedido de vista.

Não parece necessário tanto tempo de análise para concluir que as medidas violam o espírito da lei, o Estatuto do Desarmamento.

É importante que se assegure a segurança de eleitores e candidatos antes e no dia das eleições. Nesse sentido, deve-se também garantir que não haja armas próximas às seções eleitorais, como determinou o Tribunal Superior Eleitoral.

Cabe igualmente às forças de segurança garantir que o pleito ocorra de forma ordeira. Até aqui, 12 estados pediram ao TSE ajuda das Forças Armadas no primeiro turno.

Deve-se atentar para as diversas formas que a violência política pode assumir, incluindo assédio, coerção e humilhação. Desde a restauração da democracia, o país tem um histórico de eleições limpas e pacíficas a preservar.

Segurança paulista

Folha de S. Paulo

Sucesso contra homicídio deve inspirar combate ao crime organizado e patrimonial

A diferença abissal das taxas de homicídios dolosos (com intenção) em São Paulo, se comparada aos demais entes federativos, tornou-se a principal bandeira da política de segurança pública do estado. Nos últimos 22 anos, registrou-se em terras paulistas a redução em mais de 80% dos assassinatos.

Segundo levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo manteve em 2021 a menor incidência proporcional do país: 7,9 casos por 100 mil habitantes. A efeito de exemplo, no Rio de Janeiro essa taxa é mais que o triplo (27,2) —e o campeão, Amapá, atinge níveis estratosféricos (53,8).

É razoável, portanto, atribuir parte dos louros aos sucessivos governos do PSDB, partido à frente do estado por 28 anos. Entretanto foi também sob gestões tucanas que, ao longo das últimas décadas, um então pequeno grupo de presidiários estabeleceu uma organização criminosa sem precedentes.

Com conexões em todo o país e até no exterior, o infame Primeiro Comando da Capital controla hoje boa parte do tráfico de drogas, das unidades prisionais e dos crimes patrimoniais de vulto, além de estender seus tentáculos para negócios legais, como empresas de ônibus e postos de gasolina, com o propósito de lavar dinheiro.

Nesse contexto de consolidação do crime organizado, caberá ao futuro governador, seja ele qual for, enfrentar prática delituosa especializada, também sob influência do PCC e que se alastra rapidamente, sobretudo nas grandes cidades.

Trata-se de furtos e roubos sistemáticos de aparelhos celulares e, não raro, o consequente esvaziamento de contas bancárias por meio de transferências via Pix.

São temerários também o pesadelo sem fim da cracolândia, agora pulverizada pela capital após sucessivas ações de contenção com efeito prático ainda incerto, e as cenas de terror protagonizadas pelo chamado "novo cangaço" —quando criminosos explodem agências bancárias, fecham estradas e rendem moradores no interior.

Vistas com reservas por alguns candidatos, como Tarcísio de Freitas (Republicanos), a despeito de queda acentuada da letalidade policial e de mortes de agentes em serviço, as câmeras corporais devem ser ampliadas com celeridade.

Por fim, espera-se do próximo governo paulista mais investimentos em tecnologia, inteligência e prevenção; controle da circulação de armas; articulação concreta entre as polícias Civil e Militar; capacitação, ampliação e valorização dos profissionais de segurança pública.

A exemplo do que fez nos homicídios, São Paulo pode avançar mais.

As consequências do ódio

O Estado de S. Paulo

Mais um assassinato de petista por bolsonarista é resultado da escalada retórica de Bolsonaro, para quem só a ‘raça’ dos ‘brasileiros de bem’ é digna do País; Lula também acirra os ânimos

O assassinato brutal de um petista por um bolsonarista em Mato Grosso, por causa de uma discussão sobre política, renova o temor de que o ódio alimentado por radicais esteja indo longe demais. A julgar pelo comportamento dos dois principais líderes políticos do País hoje, o petista Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro, no entanto, o acirramento dos ânimos vai continuar, alimentando a espiral de violência a poucas semanas das eleições.

O presidente Bolsonaro, por exemplo, não havia comentado o caso de Mato Grosso até o início da noite de ontem, mas, em discurso no Tocantins, foi especialmente truculento em relação ao PT e a Lula. Disse que o PT era uma “desgraça” e prometeu “varrer” o partido “para o lixo da história”. Em seguida, deixou claro que, para ele, os que não são bolsonaristas não fazem parte do povo brasileiro: “Nós, brasileiros de bem, (somos) a grande maioria. Somos uma só família, um só povo e uma só raça. Somos, em grande maioria, cristãos aqui no Brasil. Sempre falo: Deus, Pátria, família e liberdade”.

Assim, soubemos pelo presidente da República que há uma “raça” dos “brasileiros de bem”, a única, em sua visão, digna de viver neste país. Os que não fazem parte dessa “raça” que se cuidem – como já havia ficado claro no caso do petista assassinado a tiros por um bolsonarista no Paraná, em julho, violência reafirmada agora nesse terrível episódio de Mato Grosso.

Se Bolsonaro não colabora nem um pouco para acalmar os ânimos de seus camisas pardas, Lula da Silva também não ajuda. A despeito de seus cabelos brancos e do fato de já ter governado o País por dois mandatos, o chefão petista ainda demonstra ter enorme dificuldade para conter seu espírito divisor, sobretudo quando sobe em um palanque. Na noite do dia 8 passado, durante um comício em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, o petista renovou a aposta na nefasta divisão dos brasileiros entre “nós” e “eles” ao comparar as manifestações de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, ocorridas na véspera, a uma “reunião da Ku Klux Klan”, o terrível grupo supremacista branco dos Estados Unidos.

“Foi uma coisa muito engraçada o ato do Bolsonaro. Parecia uma reunião da Ku Klux Klan”, disse Lula à plateia. “Só faltou o capuz. Não tinha negro, não tinha pardo, não tinha pobre, não tinha trabalhador”, concluiu o petista.

A fala de Lula pode levar ao delírio os seus apoiadores mais devotados, assim como é música para os ouvidos dos bolsonaristas mais empedernidos ouvir o presidente da República se referir a seu principal adversário como “aquele quadrilheiro de nove dedos”. A questão de fundo é: aonde essa retórica raivosa e desagregadora nos leva como Nação? Nada de bom surge no horizonte do País quando lideranças políticas que disputam palmo a palmo a Presidência da República dividem os cidadãos como se fossem membros de facções irreconciliáveis.

O sequestro do Bicentenário pelos interesses privados de Bolsonaro poderia ter sido criticado por Lula de várias maneiras. A menos republicana, sobretudo vindo de alguém que se arvora em estadista e líder de uma formidável coalizão democrática contra o “fascismo”, era atacar as preferências dos eleitores, e não a falta de espírito público de seu adversário.

Mais do que nunca, o País precisa de alguém que una. A sociedade precisa de paz, inclusive para exercer livremente o direito de divergir politicamente. É assim nas democracias. O debate público saudável equilibra bem racionalidade e emoção.

Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, o think tank V-Dem advertiu que o Brasil passava por um momento de “polarização tóxica”, em que as lideranças políticas não colaboravam para criar um bom ambiente de debate público. A bem da verdade, Bolsonaro não é a causa, mas a consequência dessa intoxicação, causada pela húbris lulopetista. Que ambos, Bolsonaro e Lula, ponham a mão na consciência, se é que a têm, e colaborem para desarmar os espíritos, pois sangue derramado por divergência política é intolerável num país que se pretende civilizado.

Leilão pelo voto dos pobres

O Estado de S. Paulo

Como se dinheiro público brotasse em árvores, Bolsonaro e Lula dão lances para ver quem compra o voto dos beneficiários do Auxílio Brasil, um programa que já é claramente eleitoreiro

Em uma das edições do programa eleitoral veiculada nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro se comprometeu a viabilizar um pagamento adicional de R$ 200 aos beneficiários do Auxílio Brasil que arrumarem emprego. “Os mais de 20 milhões de brasileiros que recebem Auxílio Brasil de no mínimo R$ 600 agora receberão mais R$ 200 se começarem a trabalhar. Vai ser R$ 800 mais o salário do trabalho”, diz o locutor. A promessa é, evidentemente, inviável, mas nem por isso deve ser ignorada. Ela expõe uma tentativa de compra do voto da parcela mais vulnerável da população, revela uma visão absolutamente distorcida sobre a realidade vivenciada por essas pessoas e demonstra o quanto o governo subestima a inteligência da maioria da sociedade.

A proposta de Orçamento enviada pelo governo ao Congresso é pública. Nela, o Executivo admitiu oficialmente não haver recursos suficientes para manter o piso do Auxílio Brasil em R$ 600 no ano que vem e, por isso, fixou um valor médio de R$ 405,21. Não havendo verba disponível para R$ 600, tampouco haverá para R$ 800. Logo, é possível inferir que, quando Bolsonaro faz essa promessa, sua única intenção é superar o compromisso de seu principal adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Líder nas pesquisas de intenção de voto, sobretudo entre os eleitores de menor renda, Lula anunciou a intenção de incrementar o benefício social com o pagamento de um bônus de R$ 150 por criança de até seis anos de idade, um dos pilares do antigo Bolsa Família.

É sob essa lógica, semelhante à de um leilão a viva voz, que tem se pautado a atuação social do governo nos últimos anos. Ela foi inaugurada nas discussões do Auxílio Emergencial, no início da pandemia de covid-19. À época, o ministro da Economia, Paulo Guedes, propôs um pagamento de R$ 200, mas a Câmara dos Deputados considerou o valor insuficiente e o elevou a R$ 500. Foi somente depois disso que o governo contrapôs o valor de R$ 600 – não por uma genuína preocupação com os mais carentes, mas para impedir o Legislativo de ficar com os méritos do programa.

Superar um adversário político deveria passar longe dos objetivos de qualquer política pública consistente e orientada pelo combate à pobreza. Mas para um presidente beligerante e que se sustenta na base do conflito, essa talvez seja a única razão a justificar a generosa oferta bolsonarista. A contraposição fica ainda mais clara em outro trecho do programa eleitoral de Bolsonaro veiculado nesta semana. Nele, o locutor afirma que o bônus é um incentivo ao trabalho e faz críticas à política do petista, o Bolsa Família, que, segundo o programa, suspendia os pagamentos quando os beneficiários encontravam emprego. Ora, num programa social com foco, em um país com enormes desigualdades sociais e um orçamento apertado, a prioridade sempre deve ser atender os que mais precisam; manter a assistência a um beneficiário que tem condições de obter renda de outra forma é contraproducente e ineficaz.

Pagar um bônus para o beneficiário que encontrar trabalho, ademais, atesta uma leitura profundamente enviesada e determinista da realidade socioeconômica brasileira, segundo a qual o desemprego – e a pobreza, em última instância – é fruto de escolhas individuais, e não consequência de uma educação de péssima qualidade, da falta de políticas públicas para promover a qualificação profissional e da omissão do Estado em ofertar vagas em creches e em escolas de ensino integral. Quando um programa social tem entre as mulheres a maioria de chefes de família, esperar que elas tenham condições de assumir postos de trabalho formais sem proporcionar uma rede de apoio para suas crianças beira a ingenuidade. Ao contrário do que pensa Bolsonaro, a porta de saída para uma situação de miséria, muitas vezes, não está na empregabilidade dos adultos, mas na educação de seus filhos e no acesso às oportunidades que foram negadas às suas mães. As mulheres de baixa renda sabem disso e, pelo que dizem as pesquisas, não parecem dispostas a vender seu voto por migalhas.

Elizabeth cumpriu o seu papel

O Estado de S. Paulo

Exercendo seus deveres com temperança, ela encarnou a unidade e a continuidade de sua nação e foi exemplo para o mundo

Quando Elizabeth nasceu ninguém esperava que se tornasse monarca. Mas seu reinado foi o mais longo da história do Reino Unido e o segundo mais longo da história mundial. Aos 10 anos, com a abdicação de seu tio, Eduardo VIII, tornou-se abruptamente a primeira na linha da sucessão. Aos 25, foi consagrada “Rainha do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte e de Seus outros Reinos e Territórios, Cabeça da Comunidade das Nações, Defensora da Fé” ou simplesmente “a Rainha”. Nada menos – mas também nada mais. 

É compreensivelmente difícil para as populações do Novo Mundo reservarem às monarquias hereditárias do Velho Mundo mais do que o cinismo ou a irreverência devidos a relíquias anacrônicas ou aos fantasmas inofensivos e pitorescos de instituições medievais sepultadas nos idos da Revolução Francesa.

Nas monarquias constitucionais o poder real está nas mãos do povo e é exercido por seus representantes no Parlamento. O poder da Coroa é puramente simbólico. Mas esse símbolo representa a vontade única da Nação, e a unção sacramental do monarca simboliza que essa vontade serve a um poder maior e sumamente benevolente. Enquanto é “Ser Supremo”, na Declaração dos Direitos do Homem francesa, “Criador”, na Declaração de Independência americana, ou “Deus”, na Constituição brasileira, na Constituição não escrita britânica ele é tudo isso e mais, é também Jesus Cristo. Mais do que um dever institucional, para Elizabeth esse serviço foi uma devoção pessoal. “Para mim a vida de Jesus Cristo, o Príncipe da Paz, é uma inspiração e uma âncora. Modelo de reconciliação e misericórdia, ele estendeu suas mãos com amor, aceitação e cura.”

Elizabeth não foi estadista, menos ainda santa. Ela não praticou heroicamente a caridade, muito menos fez milagres. Não governou, e, para sermos honestos, qual teria sido sua real contribuição para a paz e a prosperidade mundiais? Ela só “representou”, no sentido teatral do termo, essas aspirações. Nada mais – mas também nada menos. É precisamente por não ter nenhum poder real sobre o Estado ou a Igreja que o monarca pode encenar seu papel de servo do povo, como chefe de Estado, e servo dos servos de Deus, como cabeça da Igreja.

“Quero pedir a vocês, qualquer que seja a sua religião, para rezarem por mim”, rogou Elizabeth na coroação, “para que Deus me conceda sabedoria e força para sustentar as promessas solenes que farei, e para que eu sirva fielmente a Ele e a vocês, todos os dias de minha vida.” Na maior parte deles, assim o fez. Protagonizando seu papel com graça, temperança e decência, ela encarnou para seu povo a unidade de propósito em meio à multiplicidade de visões, a continuidade em meio às mudanças.

Sua última foto, a dois dias de sua morte, quando “conferiu”, pela 14.ª vez, o governo à nova primeira-ministra, Liz Truss, a mostra lúcida, feliz e trabalhando. Ela foi uma mãe, depois uma avó e até uma bisavó para os britânicos. Seu senso de dever foi um exemplo para toda a família das nações, e por isso elas se unem a eles em suas orações para que Deus salve a rainha.

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