Folha de S. Paulo
Sem ela estaríamos entregues aos nossos
principais demônios
Um dos mais bem guardados segredos dos
ingleses é a sua Constituição.
Alguns estrangeiros desavisados chegam inclusive a acreditar que os ingleses
não têm Constituição. A maneira pacífica e quase ritualística com que os
processos de sucessão da rainha Elizabeth
2ª e da chefia de governo estão ocorrendo não deixa qualquer dúvida,
no entanto, que o exercício e a alternância no poder estão subordinados a um
conjunto bastante rígido de preceitos constitucionais no Reino Unido.
De outro lado, não há qualquer segredo que regimes autocráticos, do passado, como a União Soviética de Stalin e o Chile de Pinochet, ou do presente, como a Hungria de Orbán e a Rússia de Putin, empunhem suas Constituições, ainda que essas folhas de papel não tenham nenhuma capacidade de condicionar a forma como o poder foi ou é exercido nesses regimes.
Esse aparente paradoxo se explica pelo fato
de o termo constituição ter adquirido uma excelente reputação nos últimos
séculos, sendo associado a ideias como liberdade, moderação ou mesmo democracia
e justiça. Dada a natureza cínica da vida política, não surpreende que
governantes autocráticos busquem legitimar o seu poder com base em um documento
que chamam de Constituição. Essa, porém, é apenas uma forma farsesca de
empregar o termo.
A Constituição, em sua essência, é uma
norma superior que aspira habilitar a competição política, regular a
alternância no poder, bem como condicionar o seu exercício em função dos
direitos dos cidadãos e das leis. Nesse sentido, a Constituição favorece a
colaboração entre concorrentes na condução da vida coletiva, ao contarem com
uma garantia de que não serão eliminados caso seus adversários cheguem ao
poder.
A função fundamental das Constituições,
portanto, é contribuir para que a sociedade seja capaz de coordenar de maneira
pacífica e ordenada os seus conflitos. Numa democracia,
em que a vontade da maioria deve prevalecer, as Constituições também podem ser
instrumentos eficientes para mitigar danos decorrentes de ciclos populistas.
Ao assegurar direitos, que não podem ser
suprimidos pela vontade da maioria, e organizar um sistema de freio e
contrapesos, que distribui o poder entre diversas instituições e setores da
sociedade, as Constituições democráticas contribuem para impedir que maiorias
eventuais possam subtrair das próximas gerações as mesmas franquias e
liberdades que dispuseram para chegar ao poder.
Como sabemos, a sobrevivência e a
vitalidade das Constituições dependem, em última instância, do comprometimento
dos principais atores políticos e institucionais, além da adesão dos mais
diversos setores da sociedade ao pacto constitucional. Quando isso não
acontece, elas entram em crise e eventualmente fenecem.
Evidente que as Constituições não são um
obstáculo intransponível a líderes populistas autoritários. Elas podem
desempenhar um papel fundamental, no entanto, ao arrefecer ciclos de embriaguez
política promovidos por populistas, mitigando a erosão do processo democrático,
até que o eleitor recobre a sobriedade, e a vida constitucional volte à
normalidade.
Em outras palavras, o tempo constitucional
é mais lento que o tempo dos ciclos eleitorais, o que possibilita que a
sociedade seja obrigada —em face dos procedimentos constitucionais— a esfriar a
cabeça. Nesse sentido, as Constituições podem servir como uma espécie de
superego da sociedade, sem o qual estaríamos entregues aos nossos principais
demônios.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em
direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP
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