Para especialistas e representantes do setor, propostas em tramitação na Câmara ameaçam o exercício da cidadania e a livre circulação da dados
Por Nicolas Iory / O Globo
SÃO PAULO - As propostas de criminalização
de pesquisas eleitorais que tenham resultados diferentes dos registrados no dia
da votação ameaçam o próprio processo eleitoral e a democracia. Na opinião de
especialistas ouvidos pelo GLOBO, a ideia de punir institutos de pesquisa com
multas ou até mesmo a prisão de seus representantes pode resultar em um
“apagão” de informações, prejudicando a tomada de decisão de milhões de
eleitores.
A Câmara dos Deputados aprovou nesta semana
o regime de
urgência para dois projetos sobre o tema. A medida teve o apoio do
presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), e dos partidos aliados ao presidente e
candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), que frequentemente estimula a
descrença nas sondagens de opinião pública.
Uma das propostas em discussão é a do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). O texto prevê de quatro a dez anos de prisão para estatísticos, representantes de institutos e da empresa contratante caso uma pesquisa divulgada até 15 dias antes da eleição não coincida com o resultado oficial, dentro da margem de erro. Esse projeto tramitará junto a outro, de 2011, que estipula multas de R$ 500 mil a R$ 1 milhão aos institutos que “errarem” da mesma forma em levantamentos publicados até cinco dias antes do pleito.
Pelo regime de urgência, são dispensadas
formalidades regimentais e a proposta avança mais rápido na Câmara. Os
projetos, no entanto, só devem ser votados depois do segundo turno das
eleições, marcado para o dia 30. Por serem projetos de lei, precisam de ao
menos 257 votos para serem aprovados em turno único no plenário da Câmara.
Depois seguem para análise do Senado antes de irem à sanção presidencial.
Para o coordenador do Conselho de Opinião
Pública da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep), João Francisco
Meira, as propostas nascem de um pressuposto errado: o de que as pesquisas de
intenções de voto têm como objetivo “prever” o que acontecerá no dia da
votação.
— Há uma grande incompreensão a respeito do
que são as pesquisas, para que elas servem, e o que os resultados significam. As
pesquisas aferem a intenção das pessoas antes de elas irem ou não votar. Elas
trabalham com tendências de comportamento, que é uma matéria muito fluida. Não
é uma profecia, nem algo capaz de obrigar o eleitor a votar do jeito que ele
falou na véspera. A responsabilidade do voto é do eleitor, não é da pesquisa —
diz.
Meira afirma que a eventual criminalização
das pesquisas deixaria as empresas do setor “temerosas”, o que levaria à não
divulgação de levantamentos sérios e “deixaria o eleitor mais exposto a informações
falsas”. O mesmo alerta é feito por Oswaldo do Amaral, cientista político e
diretor do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Unicamp:
— Essa proposta traz prejuízo à democracia
e priva o eleitor de uma informação importante para tomar a sua decisão. Ela
cria mais uma assimetria informacional na sociedade, que já é um grande
problema pelos desníveis de escolaridade que temos no país, por exemplo.
Bancos, partidos, grandes conglomerados empresariais, federações e organizações
de setores variados vão continuar a fazer suas pesquisas. E essas pessoas terão
uma informação que os demais eleitores não vão ter.
Decisões de última hora
Em seu projeto de lei, apresentado na
semana seguinte ao primeiro turno da eleição, Ricardo Barros diz que as sondagens
de opinião pública “acabam manipulando e interferindo diretamente na escolha do
eleitor” por supostamente levar muitos a optarem pelo chamado “voto útil” —
isto é, deixar de votar em seu candidato preferido para apoiar outro que
apareça com mais chances de ganhar.
“Nada justifica resultados tão divergentes.
Alguém está errando ou prestando um desserviço. Urge estabelecer medidas legais
que punam os institutos que erram demasiado ou intencionalmente para prejudicar
qualquer candidatura”, lê-se na justificativa do projeto de lei.
Barros reclama do que chama de “erros
gravíssimos” dos institutos no primeiro turno, especialmente ao não captar o
voto do “eleitor de direita”. A principal origem dessa queixa foi a votação de
Bolsonaro, que aparecia abaixo da linha dos 40% nas pesquisas divulgadas na
véspera, mas que terminou a votação com 43,20% dos votos válidos.
As discrepâncias entre os resultados, no
entanto, não são uma questão exclusiva do bolsonarismo ou dos “eleitores de
direita”, como alega Barros. Levantamento do cientista político Lucas de Abreu
Maia, professor da Universidade de Bristol, mostra que historicamente as pesquisas
subestimam a pontuação do segundo colocado, independentemente de seu
posicionamento no espectro ideológico.
Representantes do Ipec (ex-Ibope) e
Datafolha, dois dos mais prestigiados institutos de pesquisa do país, veem nas
decisões de última hora e na migração de eleitores de Simone
Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT) justificativas para o crescimento de Bolsonaro
no dia 2. Pesquisa divulgada na semana passada pelo Ipec mostra que 7% dos
eleitores decidiram no
próprio dia da eleição em quem iriam votar.
Além do surgimento (e resgate) de propostas
que visam a criminalizar os levantamentos, a ofensiva contra os institutos de
pesquisa após o primeiro turno incluiu também pedidos de investigação. O
ministro da Justiça, Anderson Torres, mandou a Polícia Federal instaurar
inquérito para apurar a atuação das empresas. O presidente do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Alexandre Cordeiro, também
determinou investigação
sobre "possível acordo” para “manipular o mercado e os
consumidores". Ambas as medidas foram barradas por decisão do
presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de
Moraes.
Em nota conjunta,
a Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais (Abrapel) e o Cesop da
Unicamp manifestaram "preocupação" com as "recentes tentativas
de intimidação e criminalização dos institutos". Ressaltaram que o “regime
democrático demanda a livre circulação de ideias e de informação”.
Além de prever prisões para coibir “erros”
dos institutos de pesquisa, o projeto do líder do governo na Câmara também
pretende obrigar veículos de comunicação a publicar todos os levantamentos
registrados no mesmo dia ou no dia anterior àquele que se pretende divulgar.
“Com isso o eleitor terá acesso aos números de diferentes fontes e não apenas
àqueles que possam estar deturpados”, justifica o texto.
Os selos de Aécio
Uma nova proposta sobre o assunto foi
apresentada nesta quarta-feira pelo deputado Aécio Neves (PSDB-MG). O tucano,
que se diz contra prisões de estatísticos e representantes de institutos,
sugere a criação de “selos de qualidade” para as empresas, de acordo com o
nível de coincidência entre os resultados apresentados e o que for registrado
nas urnas.
Para João Francisco Meira, o deputado
também erra ao presumir que se pode “avaliar a qualidade de uma pesquisa com
base na sua capacidade de fazer previsões”. Mas considera que a criação de
selos que difiram institutos a partir da análise de critérios técnicos, com a
auditoria dos processos e metodologias, pode ser um debate bem-vindo.
A discussão sobre mudanças nas regras para o mercado de pesquisas eleitorais não é novidade no Congresso. O novo Código Eleitoral, já aprovado pelos deputados e que ainda aguarda análise do Senado, pretende obrigar os institutos a divulgar o “percentual de acerto das pesquisas realizadas pela entidade ou empresa nas últimas cinco eleições”. O texto também estabelece medidas que visam a dar mais transparência ao setor, como a obrigatoriedade na divulgação de dados como o nome do contratante, o questionário completo e a metodologia — regras que já são seguidas neste ano.
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