Próximo governo terá de enfrentar grupos de interesse
O Globo
Principal teste para quem for eleito será
promover uma reforma tributária que desmonte a teia de privilégios
Um dos principais testes que o próximo
presidente terá de enfrentar, independentemente de quem seja eleito em 30 de
outubro, será libertar o Estado brasileiro do sequestro por grupos de
interesse. Para o eleitor, o melhor termômetro será a disposição de cada
candidato em realizar mudanças profundas e urgentes no sistema de cobrança de
impostos. A barafunda de tributos, alíquotas, regras, exceções, isenções e
subsídios é uma das principais causas do nosso atraso.
É difícil exagerar sobre quanto o Brasil é
lerdo na corrida global. Em 1980, o PIB per capita brasileiro — medido pelo
critério de paridade do poder de compra, que permite comparações internacionais
— era US$ 11.400 dólares. Nas quatro décadas seguintes, aumentou míseros 29%.
No mesmo período, cresceu 2.500% na China. Na Coreia do Sul, 729%. Alguém
poderá argumentar que os países asiáticos têm histórias e vivem circunstâncias
distintas das nossas. Pois no Chile a alta foi de 188% e na Colômbia de 108%. A
Colômbia foi a última a ultrapassar o Brasil. É uma vergonha.
A razão para nosso atraso não é a falha no diagnóstico, mas a dificuldade em enfrentar os interesses contrariados pelas mudanças necessárias. Os avanços costumam ocorrer apenas em momento de dor extrema — como foi o caso do controle da inflação ou da implantação de um arcabouço jurídico para controle fiscal. Mas em seguida o Brasil costuma repetir um padrão recorrente fadado ao fracasso.
Diante da crise, o governo, de esquerda ou
de direita, até faz o que é preciso. Mas, quando os resultados positivos começam
a aparecer, ressurge o que o economista Marcos Lisboa definiu como “pacto da
mediocridade” numa conversa com os colunistas do GLOBO Vera Magalhães e Carlos
Andreazza no podcast “Dois+Um”. Há sempre retrocesso, com diferentes grupos de
interesse se digladiando para abocanhar nacos dos recursos públicos. Exemplos
recentes são abundantes: a PEC dos Precatórios, a PEC Eleitoral, que concedeu
auxílios injustificáveis a caminhoneiros e taxistas, a legalização da corrupção
via orçamento secreto e tantos outros.
O próximo governo terá mais uma
oportunidade de quebrar a escrita. Dentre todas as amarras que prendem a
economia brasileira, sua prioridade deveria ser simplificar os impostos. Temos
a legislação tributária mais complexa do mundo, que impõe um limite aos investimentos
e a nossa capacidade de crescer. Empresas perdem um tempo absurdo para
administrar o que deve ser pago e gastam fortunas em disputas na Justiça. Pior:
muitas vezes tomam decisões com os olhos em vantagens tributárias, não no mais
racional economicamente. Claro que há os que lucram com essa situação. Basta
ler o relatório periódico de subsídios tributários para saber quem são. Tais
grupos se negam a perder privilégios, fazem lobby para deixar tudo como está e
fecham acordos em troca de financiamento aos políticos.
É urgente acabar com esse pacto de
mediocridade. Não há saídas mágicas. Na feliz metáfora de Lisboa, muitos que se
opõem, com razão, aos defensores de cloroquina no combate à Covid-19 têm uma
reação benevolente quando examinam os negacionistas na área econômica, à
esquerda ou à direita. Não há razão para isso. O remédio para o problema é
conhecido. Decerto será amargo para alguns, mas o Brasil não será curado sem
tomá-lo.
Ao se reconciliar com Bolsonaro, Moro joga
por terra legado anticorrupção
O Globo
Ex-juiz dá razão às acusações de
parcialidade nos processos da Operação Lava-Jato contra Lula
Uma das cenas mais inusitadas do debate
entre os candidatos à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair
Bolsonaro (PL), no último domingo, ocorreu nos bastidores. Foi a presença do
senador eleito Sergio Moro, ex-juiz, ex-ministro de Justiça e Segurança Pública
e ex-desafeto de Bolsonaro, municiando o atual presidente com informações
contra Lula, especialmente no tema em que ele se mostra mais vulnerável: a
corrupção nos governos petistas, fartamente documentada pela Operação
Lava-Jato.
Nada de surpreendente haveria se Moro não
tivesse pedido demissão do ministério após a fatídica reunião ministerial de 22
de abril de 2020, acusando Bolsonaro de tentar interferir na autonomia da
Polícia Federal (PF) para proteger a família e amigos. À época, Moro disse que
Bolsonaro queria nomear o diretor-geral da PF para ter acesso a relatórios de
inteligência em meio a investigações em curso.
Depois Moro se tornou crítico acerbo de
Bolsonaro. “Assim como Lula, Bolsonaro mente. Nada do que ele fala deve ser
levado a sério. Mentiu que era a favor da Lava-Jato. Mentiu que era contra o
Centrão, mentiu sobre vacinas (…) e agora mente sobre mim. Não é digno da
Presidência”, escreveu no início do ano numa rede social. Noutra mensagem,
lançou um desafio paralelo: “Vai abrir as contas do gabinete e da rachadinha,
Bolsonaro? E você, Lula? Vai abrir as contas das suas palestras e do sítio de
Atibaia?”.
Rompimentos e reconciliações estão na
natureza da política. O comportamento oportunista de Moro, porém, contribui
para manchar o legado da maior operação contra a corrupção já deflagrada no
Brasil. Ao aparecer ao lado de Bolsonaro na campanha eleitoral, ele deixa
evidente sua parcialidade nos julgamentos contra Lula, que levou à anulação dos
processos contra o ex-presidente no Supremo Tribunal Federal (STF). Ao
contrário do que sempre argumentou, acaba por mostrar que seu objetivo, desde
os tempos de juiz da Lava-Jato em Curitiba, era atingir Lula, motivado não
apenas pelo combate à corrupção, mas também por preferência política e
ideológica.
Querer crer que não existiu corrupção nos
governos petistas e que as acusações contra Lula resultaram apenas da
parcialidade de um juiz, como alega equivocadamente o candidato do PT, é o
mesmo que acreditar em Papai Noel. Tanto existiu que bilhões que escoaram pelos
dutos da roubalheira desenfreada foram devolvidos aos cofres públicos pelos
réus confessos.
Apesar dos erros e excessos, a Lava-Jato teve méritos inequívocos, ao mostrar aos brasileiros que mesmo os mais ricos e poderosos não estavam acima da lei. No país do vale-tudo, onde só os pobres costumam ir para a cadeia, foi um marco. É por isso lamentável que Moro contribua para destruir o legado que ele próprio ajudou a construir no combate à corrupção. Ao se reconciliar com Bolsonaro, fecha os olhos a todos os malfeitos, ilegalidades e arroubos golpistas dele. O combate à corrupção deveria ser feito de material mais resistente.
Dados preocupantes
Folha de S. Paulo
Cenário global, juros altos e incertezas
fiscais prenunciam dificuldades em 2023
A economia brasileira padece de baixo
crescimento desde o início da década passada —e o momento atual, embora mais
favorável que o da maior parte desse período, não pode ser encarado como o
início de uma recuperação duradoura.
As projeções de mercado para a expansão
do Produto Interno Bruto neste ano, hoje, rondam os 2,7%. Trata-se
de uma taxa surpreendentemente favorável diante das expectativas iniciais de
crescimento zero ou mesmo recessão, mas está longe de ser um resultado animador
para um país de renda média.
Ademais, os cálculos mais consensuais
apontam para um avanço de não mais que 0,6% em 2023, quando se inicia o próximo
governo. A se confirmarem as previsões, o país estaria de volta ao padrão de
quase estagnação que se observava antes do impacto devastador da pandemia sobre
a atividade de indústria, serviços e agropecuária.
Divulgado na segunda-feira (17), o índice
do Banco Central que procura reunir os desempenhos de todos esses setores
—chamado de IBC-Br e uma espécie de sinalizador de tendência do PIB— mostrou queda
aguda de 1,13% em agosto, na leitura mais recente.
Não se pode tomar o dado de apenas um mês
como prova de que a economia já deixou a rota de melhora, inclusive porque o
crescimento de julho foi revisado para cima, de 1,17% para 1,67%. Cumpre
apontar, de todo modo, os riscos que rondam a retomada.
O cenário global, do qual dependem as
exportações e os investimentos estrangeiros, é adverso. Juros estão em alta
para o combate à inflação, com ameaças de recessão nos EUA e na Europa. Aqui
mesmo, o impacto da alta da taxa do BC ainda se fará sentir.
Não menos importante, há grande incerteza
sobre como o próximo governo, qualquer que seja o vencedor da eleição
presidencial, lidará com o descalabro orçamentário produzido pela gastança
eleitoreira de Jair Bolsonaro (PL).
O próprio presidente, mesmo tendo indicado
a continuidade de seu ministro da Economia em caso de novo mandato, ainda não
foi capaz de apresentar um Orçamento que contemple a permanência de todos os
benefícios sociais criados e prometidos na campanha.
A tergiversação do oponente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e a pobreza do debate na disputa presidencial alimentam as dúvidas e desestimulam os investimentos essenciais para que o país enfim deixe o marasmo econômico.
Ensino roubado
Folha de S. Paulo
Queda nos níveis de aprendizagem e indícios
de corrupção expõem inépcia do MEC
Levantamento conduzido pelo Datafolha
trouxe, nesta semana, novos dados desalentadores sobre o impacto da pandemia na
educação dos jovens brasileiros.
Segundo a
pesquisa, que faz parte da série Jovens do Brasil, 61% dos
estudantes de 15 a 29 anos em 12 capitais acham que a crise sanitária provocou
perdas no aprendizado.
A percepção dos jovens se coaduna com os
indicadores objetivos que, nos últimos meses, vêm apontando retrocessos na já
problemática educação brasileira.
Os resultados do Sistema de Avaliação da
Educação Básica mostraram uma regressão no aprendizado dos alunos de escolas
públicas e privadas —interrompendo uma melhora contínua desde 2005. Já a evasão
no ensino médio registrou o primeiro aumento desde 2009.
Colhem-se agora, portanto, os frutos
amargos semeados pela negligência do Ministério da Educação. Ao longo de toda a
pandemia, o MEC abdicou da tarefa de coordenar a política nacional de educação,
algo que lhe compete por lei.
Estados e municípios tiveram de enfrentar
sozinhos os desafios de adaptação para o ensino remoto e de implementação de
protocolos para a reabertura das escolas.
Além disso, o MEC
converteu-se em fonte de escândalos ligados ao Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação (FNDE) —órgão entregue por Jair Bolsonaro (PL) à
sanha fisiológica do centrão.
Em fevereiro, conforme
apurou a Folha, uma das diretorias do fundo pediu à Prefeitura
de Uruaçu (GO) o envio de um ofício solicitando verbas para uma obra cujos
recursos já haviam sido empenhados em dezembro de 2021.
Mais grave: os técnicos deram orientação
para que o documento fosse preenchido com data anterior à liberação do
montante.
Ou seja, o FNDE não apenas reservou
recursos para uma obra que nem havia sido solicitada formalmente como ainda
instou a prefeitura a fraudar a data da solicitação.
Trata-se de exemplo do descalabro
identificado pela Controladoria-Geral da União no órgão, onde o abandono de
critérios técnicos favorece a acordos escusos.
Incompetência e corrupção, às quais se juntam a balbúrdia administrativa e o
viés ideológico. Eis o retrato do MEC sob Bolsonaro.
Desrespeito à liberdade religiosa
O Estado de S. Paulo
Fanáticos bolsonaristas acusam adversários de pretenderem ‘fechar igrejas’, mas são eles que fazem arruaça em Aparecida, hostilizam padres nas homilias e atacam até o arcebispo de SP
A corrida presidencial de 2022 confirmou
todas as previsões, mesmo as mais sombrias, de que esta seria uma das mais
ignóbeis campanhas eleitorais da história recente do País. Nem mesmo a
liberdade religiosa e de culto, garantia fundamental assegurada pela
Constituição, tem sido respeitada.
É um desafio à memória de qualquer cidadão
resgatar no passado algum episódio remotamente similar à profanação do
Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, quando uma súcia de
bolsonaristas radicais achou que era o caso de usar o local sagrado para louvar
o presidente Jair Bolsonaro – que lá estava, no dia 12 passado, Dia da Padroeira
do Brasil, não para afirmar valores cristãos, mas para explorar a fé de milhões
de católicos como arma política.
Aquele lamentável episódio foi até aqui o
caso mais grave de uma escalada de abusos, desrespeito e estupidez dos
fanáticos bolsonaristas que, a título de defender valores religiosos, na
verdade vilipendiam a fé alheia. Os mesmos que acusam os adversários de
representarem uma ameaça à religião e de apoiarem o fechamento de igrejas e
templos são os que, na prática, estão a tolher o direito dos outros ao culto.
Padres católicos passaram a ser
hostilizados durante suas homilias. Até dom Odilo Scherer, cardeal arcebispo de
São Paulo, passou a ser atacado nas redes sociais após fazer uma reflexão
pertinente diante do crescimento dos episódios de violência religiosa. No
Twitter, d. Odilo escreveu que “a fé em Deus permanece depois das eleições,
assim como os valores morais, a justiça, a fraternidade, a amizade e a
família”. Por fim, questionou: “Vale a pena colocar tudo isso em risco no caldo
da briga política?”.
Foi por causa dessa mensagem de paz que os
camisas pardas do bolsonarismo, infensos à razão e à empatia, passaram a
acossar d. Odilo nas redes sociais, associando-o ao comunismo, a uma “agenda
esquerdista” e, pasme o leitor, à defesa do aborto. Tal foi a virulência dos
ataques contra d. Odilo, que o cardeal se viu compelido a explicar publicamente
até a razão de ser da cor vermelha de suas vestes eclesiásticas. “Se alguém
estranha minha roupa vermelha, saiba que a cor dos cardeais é o vermelho
(sangue), simbolizando o amor à Igreja e a prontidão para o martírio, se
preciso for”. É absurdo, quase cômico, que d. Odilo tenha sido obrigado a dar
essas explicações, mas vivemos tempos em que o absurdo foi legitimado pelos
liberticidas.
D. Odilo também repeliu a infame associação
que os bolsonaristas mais radicais fizeram entre sua missão pastoral e uma
suposta tolerância em relação ao aborto. “Escrevi muitos artigos contra o
aborto, colocando claramente a minha posição”, escreveu o prelado no Twitter.
Os leitores deste jornal conhecem bem a posição do cardeal. Não foram poucos os
artigos de sua lavra no Estadão que abordaram esse tema sensível.
Mas a verdade é irrelevante na atual
campanha. Para os bolsonaristas radicais, o candidato Lula da Silva, caso seja
eleito presidente, perseguirá os católicos, a exemplo do que tem feito o
ditador Daniel Ortega na Nicarágua, tratado por “companheiro” pelo líder
petista. Malgrado seja incapaz de condenar a tirania de Ortega ou de qualquer
outro esquerdista latino-americano, Lula jamais sugeriu que pudesse perseguir
cristãos ou quaisquer outros religiosos.
Na verdade, quem tem agido sob inspiração
de um espírito claramente anticristão é o próprio presidente Bolsonaro. Foi
ele, em sua campanha pela reeleição, quem estimulou a obliteração das barreiras
morais de muitos de seus apoiadores mais radicais, violentando alguns dos
principais valores legados por Jesus Cristo, sobretudo os relacionados ao amor
ao próximo, à tolerância e à solidariedade. Quem não aceita o “mito” como
salvador é tratado como inimigo figadal por seus acólitos, mesmo aqueles que
buscam nas igrejas um refúgio de paz e conforto espiritual.
É dessa forma, constrangendo religiosos que
não dobram os joelhos diante de Bolsonaro, que os bolsonaristas pretendem fazer
de seu candidato o campeão da defesa de Deus e da família?
Anatomia de um crime eleitoral
O Estado de S. Paulo
Com o FGTS futuro para financiar imóveis e empréstimo consignado no Auxílio Brasil, Bolsonaro estimula pobres a se endividarem e escancara o uso do Estado para fins eleitorais
A menos de duas semanas do segundo
turno, a sociedade assiste diariamente à violação de todos os limites do uso da
máquina pública em nome da reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O Conselho
Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) acaba de aprovar o uso
de recursos futuros do fundo para o pagamento de até 80% da parcela de
financiamentos imobiliários. A proposta funcionará como um empréstimo
consignado, lastreado nos depósitos que as empresas ainda farão nas contas
individuais de cada empregado. A medida valerá para famílias com renda mensal
de até R$ 2.400, garantindo que elas possam adquirir imóveis mais caros do que
seus rendimentos efetivamente permitiriam.
A esdrúxula sugestão do Ministério do
Desenvolvimento Regional (MDR) foi aprovada por unanimidade pelo conselho,
composto por seis integrantes do governo, três representantes dos trabalhadores
e três dos empregadores. É impressionante que ninguém tenha ousado fazer
qualquer ponderação sobre os riscos da proposta – nem mesmo sobre o quanto as
prestações podem aumentar caso o empregado seja demitido e sobre o potencial
que isso tem para estrangular sua já limitada capacidade financeira.
Que não haja engano: essa súbita
sensibilidade com os mais pobres não tem nada de genuína. Do contrário, o
governo não teria paralisado, por mais de três anos, a contratação de novas
unidades habitacionais subsidiadas com recursos do Orçamento no âmbito do Casa
Verde e Amarela, não por acaso direcionadas à mesma parcela da população. Para
2023, o Orçamento enviado pelo Executivo ao Congresso prevê apenas R$ 82,3
milhões para o programa, um corte de 95% em relação ao valor reservado para
este ano, em que apenas 2.450 unidades foram contratadas.
Longe de resolver o crônico déficit
habitacional do País, que atingia 5,8 milhões de famílias em 2019, a aprovação
do uso do FGTS futuro em financiamentos imobiliários é uma medida que atende a
um pleito de construtoras interessadas em desovar um elevado estoque de
imóveis. Quanto ao risco de inadimplência, ora, é para isso que servem os
bancos como a Caixa. Afinal, quem mais aceitaria entrar de cabeça em um
financiamento que tem tudo para elevar ainda mais os níveis recordes de
endividamento que vêm sendo registrados no País?
Prova disso é a atuação “patriótica” da
Caixa na modalidade de crédito consignado do Auxílio Brasil. Em três dias de
operações, um banco que é conhecido por um atendimento burocrático já havia
liberado nada menos que R$ 1,8 bilhão a 700 mil beneficiários, mas a única
instituição que viu o caráter eleitoreiro dessas ações parece ter sido o
Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MP/TCU). Coube ao
subprocurador-geral Lucas Furtado pedir à Corte de ministros que suspendesse a
oferta em caráter cautelar. “Não é desarrazoado supor que o verdadeiro
propósito dessas ações, ou pelo menos da forma como elas vêm sendo conduzidas,
seja o de beneficiar eleitoralmente o atual presidente da República e candidato
à reeleição”, disse.
Se o Auxílio Brasil já era o pior, mais
caro e mais ineficiente programa social da história do País, a ideia do
empréstimo consignado para seus beneficiários é uma completa incoerência desde
sua concepção. Como justificar a alavancagem financeira de pessoas sem
condições de gerar o próprio rendimento e ignorar o fato de que estar em um
programa de transferência de renda é justamente o que garante a elas o mínimo
para sobreviver? Essa, no entanto, é apenas uma das várias medidas populistas e
irresponsáveis anunciadas pelo governo às vésperas da eleição – e nada indica
que será a última.
É preciso reconhecer o talento de Jair
Bolsonaro para normalizar o absurdo. Nunca se viu um uso tão escancarado da
máquina pública para eleger um candidato. Não se sabe se esse conjunto de
políticas terá potencial para mudar o cenário da disputa presidencial mais
acirrada da história do País, mas não há dúvida de que o atual governo atingiu
o estado da arte no que diz respeito à exploração política da pobreza.
Inaceitável assédio eleitoral
O Estado de S. Paulo
É alarmante a crescente pressão de
empregadores sobre empregados para votar em candidato de sua preferência
Não existe democracia sem voto, e isso
pressupõe liberdade de escolha por parte do eleitor. Daí ser alarmante o número
crescente de denúncias de assédio eleitoral no pleito deste ano. Não bastassem
o clima de violência e de intolerância e a acirrada troca de acusações por
parte de candidatos e militantes, a atual campanha registra cada vez mais casos
de empregadores que tentam interferir no sagrado direito de escolha de seus
colaboradores.
Na última sexta-feira, o Ministério Público
do Trabalho (MPT) já contabilizava pelo menos 294 denúncias de assédio
eleitoral no País, número que tem crescido enormemente neste segundo turno das
eleições. Em 2018, foram contabilizadas 212 denúncias. Ao Estadão, o
procurador-geral do MPT, José de Lima Ramos Pereira, disse estar impressionado
com a disseminação dessa prática criminosa que merece repúdio e punição. “Há
uma banalização do assédio”, resumiu ele.
A título de exemplo, o procurador-geral
citou casos em que o empregador pura e simplesmente ameaçou demitir o empregado
que não votasse em determinado candidato. Ou que ofereceu dinheiro em troca do
voto − o dono de uma fábrica de cerâmica acenou com R$ 200 por funcionário. Ou,
ainda, iniciativas como a de uma empresa que anunciou a seus colaboradores que
haveria redução de postos de trabalho se um certo candidato fosse eleito. Não
foi divulgado um detalhamento sobre quem eram os candidatos em questão, mas
todos os casos que vieram a público citavam o presidente Jair Bolsonaro.
Qualquer que seja o modus operandi, o
resultado é sempre o mesmo: uma tentativa indevida, ilegal e inaceitável de
interferir no direito de consciência e de escolha do eleitor. Algo,
infelizmente, que remete a um passado de triste memória: o coronelismo e o
chamado voto de cabresto. Contra tais práticas, a legislação foi sendo
aperfeiçoada, e a atuação do MPT é prova disso. Prometer ou conceder benefícios
em troca do voto, assim como usar de violência ou ameaça para coagir alguém a
votar em determinado candidato, são crimes eleitorais previstos no Código Eleitoral.
Quando isso se dá no local de trabalho, envolvendo empregadores e empregados,
está configurado o assédio.
Tal como no assédio sexual ou moral, o
assédio eleitoral parte de uma relação assimétrica entre, de um lado, quem
detém postos de trabalho e, do outro, quem precisa do emprego. É prática
criminosa. Seus efeitos, no entanto, extrapolam a esfera individual das
vítimas. Quando se verifica a banalização de tal prática, como destacou o
procurador-geral do MPT, é a própria liberdade de escolha da sociedade que se
vê ameaçada.
Ora, a Constituição assegura a liberdade de consciência, um princípio democrático basilar que se materializa na hora do voto. Não por acaso, a cabine de votação é resguardada: trata-se de assegurar privacidade a quem está diante da urna, evitando, assim, qualquer forma de controle ou interferência externa. O assédio eleitoral caminha na contramão de tudo isso. Atenta contra a democracia e a cidadania, reduzindo a liberdade dos indivíduos e da sociedade na escolha de seus governantes. Um mal a ser denunciado, combatido e punido exemplarmente.
Ruptura entre China e EUA tende a se tornar
definitiva
Valor Econômico
Posições irredutíveis das duas maiores
potências mundiais tornam o mundo mais perigoso
China e Estados Unidos aprofundaram suas
rivalidades em sinalizações estratégicas, abrindo um horizonte de confronto
amplo que beira o ponto de não retorno. O presidente americano, Joe Biden, em
documento de 48 páginas, “Estratégia nacional de segurança”, apontou Pequim
como seu principal competidor na arena internacional e indicou que a atual
década será “decisiva” para a manutenção da supremacia americana. O presidente
chinês Xi Jinping, sem mencionar os americanos, criticou, durante a abertura do
20º Congresso do Partido Comunista, a “mentalidade da guerra fria” vigente e
alertou os chineses que deveriam se preparar para enfrentar “ventos fortes,
águas turbulentas e até perigosas tormentas”.
A divulgação dos objetivos estratégicos dos
EUA foi sucedido por decretos de Biden que tentam tornar o acesso de chips e os
meios necessários para sua confecção o mais restritivos possíveis para Pequim,
fechando um cerco essencial à ascensão tecnológica chinesa. Há consenso entre
democratas e republicanos para impedir a supremacia de Pequim, que em pouco
mais de duas décadas tornou-se a segunda maior economia do mundo e ameaça em
breve retirar os EUA da liderança. Os dois países somam 40% do PIB mundial e
detêm a metade da produção industrial do planeta.
A animosidade americana levou a diplomacia
chinesa a abraçar os desafetos de Washington, a começar pela Rússia, que se
tornou uma aliada após a invasão da Ucrânia, que Pequim se recusou a condenar e
à qual atribuiu legítima defesa diante das atitudes ameaçadoras à segurança
geopolítica russa por parte da Otan. Antes disso, ao tornar-se financiadora em
grande escala de investimentos no exterior, com a Nova Rota da Seda, a China
teceu a dependência de muitos países na África e América Latina do capital
chinês, enquanto assegurava o suprimento de bens essenciais para o crescimento
do país, de metais a alimentos.
A China passou a comprar mais petróleo
russo, como fez a Índia, permitindo a Putin uma válvula de escape às
retaliações feitas pelos EUA e União Europeia após a invasão da Ucrânia. A
Índia, para resguardar-se de um vizinho poderoso na fronteira, segue uma linha
independente dos EUA, embora alinhada a Moscou por interesses vitais - a Rússia
é o seu principal fornecedores de armas.
O bloco que desafia os EUA se completa com
a Arábia Saudita, antes um parceiro de confiança de Washington no Oriente
Médio. Os sauditas jogam em parceria com a Rússia no mercado de petróleo, tendo
decretado corte de produção em um momento em que Putin necessita
desesperadamente dessa fonte de recursos para manter sua aventura imperialista
em solo ucraniano.
A estratégia americana, sob Joe Biden,
estabelece uma clara diferença entre seus velhos novos rivais políticos. “A
Rússia traz ameaça imediata e progressiva à segurança nacional na Europa (...),
mas não tem todo o espectro de poderes da China”, registra o documento do
governo americano. Para os EUA, a China é o rival principal por ter “a
intenção, e cada vez mais a capacidade, de reordenar a ordem internacional a
seu favor”.
Os EUA não aceitam um mundo multipolar,
ainda mais um em que a potência ascendente rechaça a democracia e propaga as
virtudes da ditadura de um partido único.
A guerra comercial é o principal campo de
batalha. Como os planos de Xi Jinping são de tomar a dianteira tecnológica em
todas as áreas de inovação futura, os EUA estão dispostos a usar todos os meios
para bloquear-lhe os acessos. A corrida tecnológica é decisiva, como foi, em
escala menor, a corrida espacial com a Rússia nos anos 60. Os avanços da
inteligência artificial, da supercomputação, da genética e da internet têm
aplicações vitais no campo militar, e a dianteira nessas áreas tornou-se
questão de primeira ordem da segurança geopolítica.
Xi Jinping ameaçou, em seu discurso, por
fim à independência de Taiwan. A reunificação da China “deve ser realizada”,
disse Xi, não descartando para isso “o uso da força e a opção de tomar todas as
medidas necessárias”. O cerco tecnológico guiado pelos EUA atrai a atenção da
China para a maior produtora mundial de chips avançados, a taiwanesa TMC.
A ruptura com a “fábrica do mundo” chinesa pode tornar-se irreversível, com todas as consequências decorrentes, entre elas, o encarecimento da produção mundial e mais inflação. Posições irredutíveis das duas maiores potências mundiais dão um golpe severo na globalização como a conhecemos até agora e tornam o mundo mais perigoso.
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