Correio Braziliense
Como fenômeno eleitoral, o presidente Bolsonaro
emergiu da periferia ancorado nas comunidades evangélicas, porque capturou o
sentimento de preservação da família unicelular patriarcal
Quem visita os bairros de periferias ou
favelas das grandes cidades brasileiras, com muita facilidade consegue
identificar uma família evangélica por meio da simples observação visual.
Geralmente, moram nas casas mais bem cuidadas, mesmo que menores e com
aparência mais pobre. A principal razão costuma ser o fato de que seus
ocupantes integram uma família estruturada, cuja rotina de trabalho e estudo está
sustentada na harmonia familiar, na disciplina, na resiliência, na austeridade
e na ordem. Existe uma funcionalidade na presença das igrejas pentecostais na
organização da sociedade nas periferias que não pode ser ignorada.
É óbvio que há católicos, espíritas, umbandistas etc. com família unicelular e casas bem organizadas, mas estamos falando de famílias desestruturadas. O eixo da atuação dos evangélicos nas comunidades pobres é a preservação da família unicelular patriarcal e a defesa dos seus costumes tradicionais, o que leva à formação de uma base cultural conservadora, facilmente capturada pelas narrativas políticas reacionárias. Há setores reacionários na Igreja Católica, mas a doutrina católica é menos conservadora e sua presença como organização nas periferias é muito menor, porque suas igrejas fisicamente estão fora da maioria dessas comunidades. Por força da nossa própria formação como nação, os católicos até são a maioria nessas comunidades, mas não representam uma força organizada a partir do cotidiano de seus moradores, ao contrário dos evangélicos.
O presidente Jair Bolsonaro, como um
fenômeno eleitoral de massas, emergiu da periferia em 2018 ancorado nas
comunidades evangélicas, porque capturou o sentimento de preservação da família
unicelular patriarcal. Com uma narrativa conservadora, confrontou a revolução
dos costumes, que é identificada pelos evangélicos como uma das causas da sua
desestruturação, cujas consequências são dramáticas para uma família de baixa
renda, porque bagunça a vida de todos os seus integrantes do ponto de vista até
da sobrevivência física, ao contrário do que ocorre com um núcleo familiar de
classe média, que sofre consequências sérias, mas tem mais mecanismos de
defesa.
A agenda identitária da renovação dos
costumes serviu de plataforma para que o PT e outros setores de esquerda, após
o impeachment de Dilma Rousseff, reagrupassem suas forças e iniciassem o
resgate de sua influência na sociedade, que havia sido fragilizada pela
cooptação dos movimentos sociais durante os governos Lula e Dilma. A
centralidade dessa pauta na luta contra Bolsonaro, porém, foi um erro em 2018,
quando já estava em jogo a questão democrática, o que por muito pouco não se
reproduziu nas eleições deste ano. Isso fez com que o apoio dos evangélicos se
tornasse a principal ferramenta de Bolsonaro para penetrar nas camadas mais
pobres da população, ainda que seja rejeitado pela maioria dos mais pobres e
das mulheres.
Pesquisa
O Datafolha divulgado ontem, por exemplo,
mostra que Bolsonaro lidera a disputa contra Lula entre os evangélicos, por 66%
a 28%, enquanto a liderança do petista entre os católicos é de 58% a 37%. Lula
vence entre os mais pobres, com renda de até dois salários mínimos, de 57% a
37%, mas perde em todas as faixas de renda acima disso, inclusive entre os que
ganham entre dois e cinco salários mínimos, em que Bolsonaro lidera por 53% a
41%, faixa com forte presença evangélica.
Lula manteve a liderança geral, com 49% de
intenções de votos, mas diminui a distância para Bolsonaro, como 45%. Só
manteve a dianteira por causa da maioria das mulheres (51% a 42%), do Nordeste
(67% a 29%) e dos negros (58% a 38%), além dos católicos e dos mais pobres.
Não à toa Lula, divulgou ontem a sua carta
aos evangélicos, na qual reiterou a defesa do Estado laico e da liberdade
religiosa. “O respeito à família sempre foi um valor central na minha vida, que
se reflete no profundo amor que dedico à minha esposa, aos meus filhos e netos.
Por isso, compreendo o lugar central que a família ocupa na fé cristã”, diz o
documento. “Também entendo que o lar e a orientação dos pais são fundamentais
na educação de seus filhos, cabendo à escola apoiá-los dialogando e respeitando
os valores das famílias, sem a interferência do Estado”, completa.
O documento procura repelir a acusação de que pretende fechar as igrejas evangélicas, muito difundida pelos pastores que apoiam Bolsonaro para disseminar ojeriza ao PT e ao ex-presidente Lula nas comunidades evangélicas: “Todos sabem que nunca houve qualquer risco ao funcionamento das igrejas enquanto fui presidente. Pelo contrário! Com a prosperidade que ajudamos a construir, foi no nosso governo que as igrejas mais cresceram, principalmente as evangélicas, sem qualquer impedimento, e até tiveram condições de enviar missionários para outros países.”
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