Valor Econômico
Depois das ondas de endividamento dos
últimos anos, o espaço fiscal pode se mostrar bem mais exíguo
Carlos I, da Inglaterra, perdeu uma guerra
civil, foi acusado de traição e acabou sendo decapitado. Seu filho, Carlos II,
foi convocado pelo Parlamento, que havia condenado o pai, a retomar o trono,
começando a longa e exitosa trajetória de monarquia constitucional na
Inglaterra, que perdura até hoje. Esperemos que o reinado de Carlos III se
pareça muito mais com o do segundo. Mas o fato é que o primeiro evento
relevante em seu reinado foi uma crise fiscal e financeira - sobre as quais o
monarca não tem nenhuma responsabilidade, claro, o Parlamento continua
governando o Reino Unido.
A crise, até o momento, custou o emprego do Chanceler (Ministro da Fazenda), e, a julgar pelos comentaristas políticos, pode determinar o fim bem prematuro do governo de Liz Truss, e, em última instância, contribuir para levar os Trabalhistas de volta ao poder, na próxima eleição.
Um pouco de contexto. O Reino Unido está
vivendo uma conjuntura econômica particularmente desafiadora. Não apenas a
economia sofre as consequências do Brexit, mas da covid-19 e do choque de
energia causado pela guerra na Ucrânia.
Após uma contração superior a 9% em 2020, o
PIB britânico se recuperou parcialmente em 2021, com expansão de 7,4%, e deve
crescer algo como 3,6% no ano corrente, segundo as projeções do FMI. A inflação
saiu de 1,3% em 2019 para 0,6% em 2020, mas acelerou depois para 5,4% em 2021 e
deve atingir, segundo os economistas do Fundo, 11,3% ao final do ano, recuando
para 6,3% em 2023 - a meta para a inflação é de 2%. Nesse contexto, o Banco da
Inglaterra vinha apertando a política monetária, tanto com elevação da taxa de
juros, que subiu para 2,25% ao ano na reunião de setembro, quanto pelo anúncio
do início de um processo de restrição quantitativa (redução do estoque de
títulos públicos que o banco central havia adquirido, por meio da criação de
reservas, durante a pandemia).
O quadro complicou consideravelmente no dia
23 passado, quando o governo anunciou um “mini-orçamento” incluindo estímulos
fiscais da ordem de 7% do PIB, sendo 5% em subsídios ao consumo de energia, e 2%
em cortes de impostos - esta última parte foi uma surpresa para os
investidores. Aparentemente, a lógica é de que o novo regime fiscal
impulsionaria o crescimento de tal forma que, após um período inicial, o
estímulo acabaria sendo autofinanciado. Não deu certo.
As razões são várias. Em primeiro lugar, no
Reino Unido, como em muitos outros lugares, a dívida pública já mostrou
crescimento expressivo nos últimos anos, de 84% para 95% do PIB entre 2019 e
2021, evidenciando o custo de se mitigar os efeitos econômicos da pandemia. Não
há limite mecânico para a razão dívida-PIB, a partir do qual os investidores
perdem a confiança em um emissor soberano, mas, obviamente, quanto maior o
endividamento, maior o risco, todo o resto sendo igual.
Outro fator importante é a interação entre
política fiscal e monetária. A aceleração inflacionária observada no Reino
Unido tem suscitado uma resposta de política monetária clássica, acomodando o
efeito primário do choque de energia, mas combatendo o efeito secundário, notadamente
uma deterioração das expectativas de inflação - como o desemprego está em
patamar historicamente baixo, 3,4%, o risco de uma espiral entre preços e
salários é real e também deve estar pesando no processo decisório do Copom
britânico.
Mais importante, independente de arranjos
legais ou institucionais, o limite para o endividamento acaba sendo dado pelo
apetite do público poupador pelos títulos emitidos pelo governo. E este depende
fundamentalmente da confiança na sustentabilidade da dívida. Quando essa confiança
é abalada, os preços dos títulos caem, e o governo passa a pagar mais caro para
se financiar. No caso extremo, como se o preço dos títulos caísse a zero, o
governo não mais consegue se financiar de forma voluntária, nos mercados (pense
no caso da Argentina).
No caso britânico, os mercados não chegaram
a se fechar, mas o retorno no título de 10 anos, por exemplo, subiu 1 ponto
percentual, e a libra afundou para a paridade com o dólar e o euro, atingindo o
menor patamar histórico, em menos de uma semana a partir do fatídico
mini-orçamento. O Banco da Inglaterra se viu forçado a intervir no mercado de
títulos públicos (na contramão do aperto quantitativo que havia anunciado dias
antes), para restaurar seu bom funcionamento e, na prática, amparar fundos de
pensão que estavam mal posicionados para o reapreçamento que estava ocorrendo.
No caso, os investidores parecem ter se
incomodado pela atitude do governo, abertamente contrário à “ortodoxia do
Tesouro”, e pela ausência de uma análise dos custos e implicações de médio
prazo do pacote - não foi tanto a fotografia, e sim o filme, que assustou os
credores do governo britânico.
Parte do pacote fiscal está, enquanto
escrevo, em vias de ser abandonado, e a sustentabilidade política da premiê
Truss parece precária. Vivemos uma aparente trégua, mas a confiança ainda não
foi plenamente restaurada. A lição da crise britânica é clara: depois das ondas
de estímulo e endividamento dos últimos anos, o espaço fiscal pode se mostrar
bem mais exíguo do que as autoridades supõem, na atual conjuntura global de
ajuste monetário, e a margem para erros parece bastante limitada. Seria pouco
prudente achar que isso não pode acontecer também em outros países.
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