Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O medo tornou-se um item da estrutura de
poder e um modo de dominação religiosa e política que se completam
Envolvendo 1.284 empresas, ocorreram 1.633
denúncias de assédio eleitoral, 1.572 das quais se deram após o primeiro turno
das eleições, no comércio, na indústria e no agronegócio.
Muitos empregados atingidos por atos de
coação para que votassem em quem o patrão indicava. Deviam as vítimas
apresentar comprovante do voto, fotografado com o celular, caso contrário
seriam demitidas. Processos foram abertos, pelo Ministério Público do Trabalho.
Já no período eleitoral de 2018, foram 212
os casos chegados ao conhecimento do MPT. As denúncias de agora, quatro anos
depois, no segundo turno desta eleição de 2022, foram seis vezes mais
numerosas. A atual situação política criou uma cultura de violação do direito
do eleitor à verdade de seu voto.
A ocorrência não é tratada como indício de prática da escravidão, porque tratada como mero crime eleitoral, quando é, na verdade, também delito laboral. O patrão que assedia seu empregado e cerceia sua vontade cidadã de decidir seu voto de conformidade com o que lhe dita a consciência política priva-o do direito de ser dono de suas decisões. Isso ocorria com o escravo, que não era dono de sua vontade. Ao ser vendido, vendia o traficante na sua pessoa não só seu corpo, mas todos os seus atributos, sua própria consciência e seu imaginário onírico.
Não foi por acaso que os autores da
primeira Constituição republicana e das leis dela decorrentes tivessem
estabelecido regras de restrições eleitorais em relação a pessoas que embora
juridicamente livres viviam em situação social de confinamento e tutela da
vontade, como os recolhidos de instituições conventuais e as praças de pré,
sujeitas a restrições de liberdade que não garantiam fossem elas donas de
querer político.
Ainda assim, foi comum entre nós, na
Primeira República, o voto de cabresto mediante o uso de vários recursos
sociais de cerceamento do direito de expressão da vontade política, formas de
coação de agregados e dependentes dos régulos de roça, que adotavam meios de
sujeição de seus trabalhadores.
A verdade é que esses arcaísmos políticos
ainda persistem em várias situações, especialmente na das empregadas
domésticas. São elas vítimas da aplicação, aparentemente inocente, de técnicas
de ressocialização para a sujeição. Os vínculos de trabalho as situam na borda
do direito e do vínculo racional e contratual de trabalho, tornando-as
vulneráveis à manipulação e direcionamento da vontade. Na prática, uma situação
não só de assédio laboral, mas de sujeição escravista.
Em casos assim, o assédio eleitoral se
situa num conjunto de crimes conexos ao de escravidão, sujeito a punição bem
mais grave do que a mera multa.
O combate à escravidão no Brasil
contemporâneo não tem levado em conta essa forma de sujeição ilegal, que é a do
assédio eleitoral, porque escravidão, no imaginário brasileiro, tem sido,
equivocadamente, reduzida à interpretação econômica na chamada escravidão por
dívida.
Quando, na verdade, sua forma mais grave é
a que resulta não só em lucro extraordinário derivado da sobreexploração do
trabalho. Mas também em poder indevido resultante, indiretamente, da sujeição
laboral imposta a empregados por coação e medo.
Os casos de assédio eleitoral, entre nós,
desde 2018, coincidem com sua prática por negociantes e patrões cujas opções
políticas são ou foram majoritariamente pela candidatura de Bolsonaro à
Presidência da República. O que os situa num conjunto de procedimentos sociais
arcaicos, de um projeto político orientado pelo ideal do retrocesso social de
uma sociedade baseada na obediência dos subalternos a seus senhores. Negação da
sociedade democrática e moderna, que se baseia na igualdade jurídica, no
discernimento e no direito de exprimi-lo, nas questões sociais e políticas.
Com apoio de igrejas evangélicas
fundamentalistas, que se tornaram coadjuvantes do autoritarismo do regime do
atual governo, o medo tornou-se um item da estrutura de poder e um modo de
dominações religiosa e política que se completam. Nos dois casos, o medo é
provocado intencionalmente para criar insegurança e colocar sob sujeição
milhares de pessoas destituídas de vontade própria e inaptas para o exercício
livre da cidadania.
Um dos aspectos significativos da ordem
política retrógrada que define o poder no Brasil foi que, minutos depois do
resultado da eleição de 30 de outubro, multidões de evangélicos, em várias
regiões do país, entraram em grande estado de exaltação. De joelhos, braços
para cima, revestidos da bandeira ou de panos verdes e amarelos, imploravam a
Deus que impedisse que suas igrejas fossem fechadas. O medo manipulado os
privara de discernimento político e cidadão.
*Sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, professor da Cátedra Simón Bolívar da Universidade de Cambridge
Um comentário:
Um artigo genial,simples assim.
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