O Estado de S. Paulo
O uso da religião nas eleições é só a ponta
de um processo maior de reenquadramento (‘reframing’) da esquerda em chave
moral.
Neste ano, a campanha eleitoral de Jair
Bolsonaro apresentou Luiz Inácio Lula da Silva como inimigo da religião.
Segundo esse discurso, a eleição do candidato do PT à Presidência da República
colocaria em risco a liberdade religiosa no País.
Utilizar o tema na campanha foi arriscado.
Se existe um assunto em que Lula tem um histórico muito positivo, ele é
justamente a defesa da liberdade religiosa. Pelo visto, Jair Bolsonaro apostou
na ignorância de seu eleitor em relação aos fatos ocorridos no segundo mandato
de Lula.
Em 13 de novembro de 2008, sob a presidência de Lula, o Brasil firmou com a Santa Sé o acordo relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. No ano seguinte, o Congresso aprovou o tratado e, em 2010, o presidente Lula editou o Decreto n.º 7.107/2010 promulgando o Acordo Brasil-Santa Sé. Trata-se de um tema difícil e complicado, cheio de percalços e ressentimentos históricos. Eventual incompreensão sobre o assunto poderia gerar alto custo político para o presidente da República. No entanto, de forma corajosa, Lula assumiu o risco e fez com que o Acordo Brasil-Santa Sé fosse assinado e aprovado. Em todo o mandato de Jair Bolsonaro, não houve nenhum ato do governo federal em favor da liberdade religiosa tão arriscado politicamente. Sempre que Bolsonaro falou de religião foi em benefício político próprio.
O Acordo Brasil-Santa Sé, que, entre outros
pontos, protege o ensino religioso facultativo, é um tratado sofisticado
juridicamente, que respeita o caráter laico do Estado brasileiro. O texto não
concede tratamento privilegiado à Igreja Católica, nem muito menos atribui
status de verdade à sua doutrina. Afinal, o Estado laico é incompetente para se
manifestar sobre temas religiosos. O Acordo Brasil-Santa Sé apenas concretiza
no âmbito católico o conteúdo das disposições constitucionais sobre a liberdade
religiosa.
Sem entrar em questões religiosas, o Acordo
Brasil-Santa Sé reconhece que, para o exercício da liberdade religiosa, é
preciso haver uma proteção jurídica das igrejas. Reafirma-se, no artigo 3.º, “a
personalidade jurídica da Igreja Católica e de todas as instituições
eclesiásticas (…), desde que não contrarie o sistema constitucional e as leis
brasileiras”.
No artigo 7.º, o Brasil compromete-se a
adotar, segundo seu ordenamento jurídico, “as medidas necessárias para garantir
a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias,
símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação,
desrespeito e uso ilegítimo”. Bastaria a leitura desse artigo, assinado
enquanto Lula era chefe de Estado, para pôr por terra as acusações de Bolsonaro
de que o candidato petista teria a pretensão de perseguir a prática religiosa
no País.
O Acordo Brasil-Santa Sé aborda, com grande
respeito à natureza específica do fenômeno religioso, um dos aspectos mais
sensíveis (também do ponto de vista financeiro) do funcionamento das igrejas. O
tratado reconhece que “o vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis
consagrados mediante votos e as dioceses ou institutos religiosos e equiparados
é de caráter religioso e, portanto, observado o disposto na legislação
trabalhista brasileira, não gera, por si mesmo, vínculo empregatício, a não ser
que seja provado o desvirtuamento da instituição eclesiástica”. Com esse
artigo, Lula e o Congresso Nacional, que depois aprovou o acordo,
proporcionaram segurança jurídica para a operação das igrejas e,
consequentemente, para a vivência religiosa.
Na sessão legislativa em que a Câmara
aprovou o Acordo Brasil-Santa Sé, foi também aprovado um projeto de lei
aplicando disposições similares às do tratado a todas as religiões. Depois, a
proposta de uma Lei Geral das Religiões foi arquivada no Senado, onde era
relator o então senador Marcelo Crivella.
Tudo isso foi realizado num governo do PT,
que, segundo Bolsonaro, perseguia igrejas. Relembrar esses episódios ajuda a
mostrar como é fácil, em campanha eleitoral, distorcer a realidade. Mas a
questão é mais profunda. O uso da religião nas eleições é apenas a ponta de um
processo maior – operado pelo que se convencionou chamar de “extrema direita” –
de reenquadramento (reframing) da esquerda em chave moral, e não política. O
elemento constitutivo da esquerda seria o “discurso desviante” dos
intelectuais, dos artistas, das universidades, dos organismos internacionais.
Sob esse enfoque, resistir à esquerda deixa de ser simples escolha política,
para se tornar um imperativo moral-religioso de defender o que intitulam ser o
“Brasil profundo”, uma peculiar imagem de país construída a partir de suas
próprias referências e preferências. Como se vê, trata-se também de um processo
de exclusão do outro e de sua cidadania: quem pensa diferente torna-se menos
brasileiro, menos patriota.
É urgente qualificar o debate público. A
política não pode ser uma arena de pânico, e sim diálogo de razões públicas. É
legítimo fazer oposição a Lula, mas dizer que ele persegue as religiões é
descumprir o 8.º mandamento da lei de Deus.
*Advogado
4 comentários:
GRATO PELO PROVIDENCIAL REFRESCO NA MEMÓRIA!
Sim, verdade.
Como fazer essa informação chegar ao crentes evangélicos se os pastores a escondem e ainda mentem?
Percebam o ENORME DESAFIO q o LULA enfrenta. PERCEBAM.
Excelente texto! Fiquei curioso se o projeto de lei aprovado na mesma sessão do tal acordo incluiria figuras tão extraordinárias e respeitáveis como o palhaço, digo, pastor Kelmon, candidato-laranja a presidente pelo partido do atirador e miliciano bolsonarista Roberto Jefferson...
O padre de festa junina avacalhou com o debate-nacional.
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