Folha de S. Paulo
Lisboa preferiu morrer em batalha a se
submeter a um governo arbitrário
Quem estava vivo e ativo em 1984 ainda se
lembra do clima que tomou o Brasil durante a campanha
pelas Diretas Já. O comício da Candelária, no Rio, foi uma experiência
emocional e sensorial intensa até para quem estava em algum lugar distante do
palanque. Era um tempo de esperança em um futuro melhor, o final de um período
sombrio que nos tinha sufocado por mais de duas décadas.
Pode-se dizer que um clima parecido, em
bem menores proporções, foi experimentado pelos que, às vésperas da Independência,
passaram a ter acesso aos jornais e panfletos publicados pela imprensa, que
fora liberada no Brasil em 1821. Essa imprensa livre, ainda que incipiente,
levou adiante o movimento
pelo "fico" (9 de janeiro de 1822) e fez a campanha
pela primeira
Constituinte brasileira.
Em maio daquele ano, o jornalista João Soares Lisboa, editor do Correio do Rio de Janeiro, fez correr na cidade um abaixo-assinado e colheu 6.000 assinaturas pedindo eleições para uma Assembleia Constituinte brasileira. No mesmo documento recomendava aos subscritores que indicassem se queriam que as eleições fossem diretas ou indiretas. Dom Pedro 1º aceitou o pedido de uma Constituinte, mas não o das eleições diretas pelo qual a maior parte dos assinantes havia optado. O jornalista protestou, questionando: "Quem autorizou Sua Alteza Real a determinar o contrário do que lhe pediu o povo?".
O protesto, publicado na edição de número
64 do Correio, em 1º de julho de 1822, levou Soares Lisboa a ser julgado por
ofensa grave ao chefe do Poder Executivo, crime previsto na lei sobre abuso da
liberdade de imprensa. O caso inaugurou o sistema de jurados no Brasil, que foi
criado justa e exclusivamente para julgar aquele tipo de crime. João Soares
Lisboa foi absolvido e, assim como os seus leitores, comemorou a vitória como
prova de que o Brasil entrara de fato na era das luzes e dos direitos.
Interessante contrastar aquele longínquo
julho de 1822 com o clima que o Brasil viveu com o fim da ditadura. Entre 1983
e 1984, muito mais do que 6.000 brasileiros se manifestaram pelas Diretas Já
nas grandes cidades do país. Enorme foi também a nossa frustração com a escolha
da eleição
indireta para o pleito de 1985. Mas essa frustração foi superada pela
Assembleia Constituinte, que promulgou a Constituição de 1988, dando forma de
lei aos direitos reprimidos pela ditadura.
A alegria dos liberais brasileiros da
Independência durou menos que a nossa. Antes mesmo do final de 1822, João
Soares Lisboa e seus companheiros foram presos ou tiveram que fugir para o
exterior. Exilado em Buenos Aires, Soares Lisboa pôde voltar ao Rio de Janeiro
quando a Assembleia Constituinte foi inaugurada, em 3 de maio de 1823. Partiu
novamente depois que, por um golpe de força, o imperador dissolveu a
Assembleia, em 12 de novembro. Por ironia da história, os perseguidores do
jornalista de 1822 passaram a ser perseguidos juntamente com ele em 1823.
Nós, que acreditávamos que nossos direitos
estavam garantidos por leis estabelecidas há décadas, os vimos sabotados
por juízes e
promotores midiáticos, os quais hoje estão desmascarados e desmoralizados.
No entanto nem podemos comemorar tais derrotas. Os abusos cometidos por eles
criaram um ambiente de insegurança jurídica que estimula o governo que
aí está a desobedecer às leis, ofender as instituições democráticas e
ameaçar romper a ordem pelo uso das Forças Armadas.
João Soares Lisboa seguiu para o Recife revolucionado
pela Confederação
do Equador e se juntou a seu amigo Frei
Caneca na luta por aquela outra independência, a do Nordeste. Homem do
comércio e das letras, amante romântico dos ideais de liberdade impulsionados
pelo Iluminismo, João Soares Lisboa preferiu morrer no campo de batalha a se
submeter a um governo arbitrário.
*Pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa e autora dos livros "Insultos Impressos: a Guerra dos Jornalistas na Independência" (Companhia das Letras, 2000) e "O Jornalista que Imaginou o Brasil: Tempo, Vida e Pensamento de Hipólito da Costa" (Editora da Unicamp, 2019)
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