O Globo
A experiência nos últimos anos evidenciou a
fragilidade de nosso arcabouço penal para conter e punir com rigor a atividade
golpista
As ações de bolsonaristas radicais contra a
ordem democrática têm sido chamadas pela imprensa e por juízes de “terrorismo”.
O enquadramento como terrorismo não encontra amparo claro na legislação e
sinaliza um esforço de endurecimento penal que talvez seja necessário. Enquanto
o enquadramento mais claro no crime de abolição violenta do Estado Democrático
de Direito (Lei 14.197/2021) acarreta pena de reclusão de 4 a 8 anos, o
enquadramento como terrorismo (Lei 13.260/2016) levaria a penas de reclusão
duríssimas, de até 30 anos.
Nossa lei antiterrorismo é deliberadamente inócua. Quando a instituímos, para atender à pressão internacional, havia temor da esquerda de que ela pudesse ser utilizada para criminalizar a conduta de movimentos sociais que estivessem reivindicando direitos — que pudesse ser usada para acusar de terrorismo um bloqueio de rodovia para reivindicar moradia pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) ou uma ocupação do Incra para reivindicar reforma agrária pelo Movimento Sem Terra (MST).
Assim, sob forte pressão da esquerda, o
Congresso incluiu duas precauções que tornaram o enquadramento como terrorismo
muito difícil. A primeira limita as motivações do terrorismo a “razões de
xenofobia, discriminação ou preconceito” — o único terrorismo expressamente
reconhecido é o que tem motivação discriminatória. Além disso, para
inequivocamente excluir sua aplicação a movimentos sociais, a lei esclarece que
o conceito de terrorismo “não se aplica à conduta de pessoas em manifestações
políticas com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades
constitucionais”.
Só que as salvaguardas criadas para
dificultar ou impedir a aplicação da lei antiterrorismo ao MST ou ao MTST
também dificultam sua aplicação à invasão às sedes dos Três Poderes, à bomba
colocada num caminhão com combustível na véspera do Natal, à derrubada de
linhas de transmissão de energia e às tentativas de bloqueio de refinarias.
Embora muitas dessas condutas, sobretudo o atentado e os atos de sabotagem,
sejam imediatamente reconhecidos pelo senso comum como ações terroristas, não
encontram um enquadramento legal inequívoco.
Em pelo menos três ocasiões, o Supremo
Tribunal Federal (STF) sinalizou que pode fazer uma interpretação extensiva da
lei antiterrorismo para enquadrar as ações antidemocráticas de bolsonaristas. A
primeira delas foi na nota conjunta dos presidentes dos Três Poderes, logo após
os eventos de 8 de janeiro, em que diziam rejeitar “os atos terroristas, de
vandalismo, criminosos e golpistas”.
A segunda sinalização de que o STF pode
fazer uma interpretação extensiva do conceito de terrorismo é a ordem do
ministro Alexandre de Morais que determinou o afastamento do governador do
Distrito Federal, Ibaneis Rocha, por omissão diante de “atos terroristas”. Mais
recentemente, o ministro também manteve a prisão de 140 envolvidos nos atos de
8 de janeiro com base na lei antiterrorismo.
Uma interpretação desse tipo poderia
estender o conceito de terrorismo além das motivações de xenofobia,
discriminação ou preconceito, expressas na lei, de modo a incluir também
motivações políticas —mais ou menos como o Supremo fez quando equiparou, de forma
extensiva, a homofobia ao crime de racismo, em 2019.
Embora restrinja a motivação a
discriminação ou preconceito, a definição de terrorismo na nossa legislação é
clara. Trata-se de uma série de atos “cometidos com a finalidade de provocar
terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz
pública ou a incolumidade pública”. Entre os atos, estão usar explosivos,
sabotar o funcionamento de instalações de transmissão de energia e refino de
petróleo e apoderar-se com violência ou grave ameaça de instalações públicas.
Contornada a limitação da motivação
discriminatória, o enquadramento seria claro: os bolsonaristas que invadiram as
sedes dos Três Poderes e aqueles que tentaram explodir um caminhão de
combustível no aeroporto de Brasília poderiam ser enquadrados como terroristas,
assim como seriam julgados por terrorismo aqueles que derrubaram ou tentaram
derrubar torres de transmissão de energia e bloquear a saída de combustível em
refinarias. A pena seria de 12 a 30 anos de prisão, e os meros atos
preparatórios poderiam ser punidos com reclusão de até 22 anos. Segundo a
Constituição, os crimes são inafiançáveis e não suscetíveis de graça ou
anistia.
A experiência nos últimos anos evidenciou a
fragilidade de nosso arcabouço penal para conter e punir com rigor a atividade
golpista. Embora o Congresso tenha mostrado disposição de atualizar e
aperfeiçoar a legislação, ela não tem como retroagir. Mais uma vez, o ativismo
judiciário pode ser acionado para corrigir deficiências do Legislativo. É uma
solução muitas vezes oportuna, mas que só aceitamos porque coincide com o que
pensamos.
2 comentários:
Perfeito! O colunista expõe claramente a legislação atual e a situação. É possível até que o STF enquadre vários dos golpistas de 8/1 como "terroristas", mas a legislação impede ou dificulta tal interpretação. Vamos ver até que ponto o STF (ou Alexandre de Moraes) está disposto a esticar a interpretação possível da norma legal.
O anônimo entende do riscado.
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