terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Rubens Barbosa* - As relações entre civis e militares

O Estado de S. Paulo.

Chegou o momento de colocar a questão no centro das preocupações do Legislativo nacional e desmontar armadilhas que possam estimular a radicalização política

As Forças Armadas, nos últimos anos e, especialmente, antes e durante os acontecimentos de 8 de janeiro, como instituição, não tomaram partido, apesar de sucessivas iniciativas em contrário, e permaneceram silenciosas e respeitosas da Constituição e do Estado de Direito. O não envolvimento da instituição, fator importante para reduzir as tensões, e a disposição de identificar e punir militares da ativa que individualmente se omitiram ou participaram dos atos de vandalismo em Brasília abrem um espaço para que a confiança seja restabelecida e o tema da relação entre civis e militares possa ser tratado de maneira objetiva.

Preservar a instituição e reafirmar a autoridade presidencial como comandante supremo, com a superação da desconfiança recíproca entre a Presidência da República e as Forças Armadas, explicitada publicamente, foi um trabalho discreto e bem-sucedido do ministro da Defesa, Jose Múcio. “Ser militar é ser profissional, respeitar a hierarquia e a disciplina. É ser coeso, íntegro, ter espírito de corpo e defender a Pátria. É ser uma instituição de Estado, apolítica e apartidária. Não interessa quem está no comando, a gente vai cumprir a missão do mesmo jeito”, complementou o novo comandante do Exército, general Tomás Paiva. Em outras palavras, o que estava sendo discutido, sem ser explicitado, era a preeminência do poder civil.

Nas últimas décadas houve um declínio do poder político das Forças Armadas, porém, nos últimos anos, verificou-se uma crescente erosão do controle civil sobre os militares, com a fragilização da democracia – agravada pela divisão do País em todos os temas, econômicos, políticos e sociais, e pela parcial politização no meio militar. Seria importante discutir mecanismos e medidas práticas para reforçar a confiança recíproca das instituições e superar as críticas estimuladas por grupos radicais minoritários dos dois lados, contrários à pacificação.

O efetivo controle civil sobre os militares é parte da democracia, concedido pela vontade do povo expressa nas eleições, e deve ser efetivamente exercido no contexto do marco constitucional e sob o império da lei. Vai além de submeter-se ao governante de turno, pois significa obediência à democracia e à Constituição.

A discussão sobre o controle civil no relacionamento com os militares tem sido evitada historicamente por receio da reação das Forças Armadas, em razão das sucessivas interferências militares no processo político interno no Brasil, desde a proclamação da República. Mesmo na Constituinte de 1988, logo após o período de controle militar da cena política interna, o tratamento dado ao assunto, pela delicadeza da matéria, resultou numa fórmula política de compromisso (anistia e redação do artigo 142), com consequências negativas que permanecem até hoje.

As eleições presidenciais americanas em 2024, no clima de divisão e radicalização do país, motivaram oito secretários de Defesa e cinco chefes do Estado Maior das Forças Armadas dos EUA a elaborar alguns princípios sobre a prática do controle civil sobre os militares, que se aplicam também ao Brasil, como mostrei em artigo de 24 de janeiro.

“O controle civil deve ser exercido pelo Executivo pela cadeia de comando, desde o presidente até o ministro civil da Defesa, por meio de ordens operacionais. O controle civil deve ser exercido pelo Legislativo por meio de poderes estabelecidos na Constituição, a começar pelo poder de declarar guerra e oferecer apoio às Forças Armadas. O Congresso determina e autoriza os recursos públicos, sem os quais a atividade militar é impossível. O Congresso tem atribuição legal de supervisionar e decidir sobre a política e a estratégia nacional de defesa e aprovar o orçamento do Ministério da Defesa. Em certos casos ou em controvérsias, o controle civil é exercido pelo Poder Judiciário pela revisão de políticas, ordens executivas e ações envolvendo os militares” (como foi o caso da decisão do STF sobre o alcance do artigo 142 da Constituição federal).

“As lideranças militares e civis devem manter os militares afastados da atividade políticopartidária. Durante as eleições presidenciais, os militares têm uma dupla obrigação. Primeiro, porque a Constituição prevê apenas um comandante em chefe por vez, os militares devem auxiliar o atual comandante em chefe no exercício do dever constitucional de preservar, proteger e defender a Constituição. Segundo, porque são os eleitores (não os militares) que decidem quem vai ser o comandante em chefe, eles devem se preparar para ajudar quem os eleitores escolherem, conclui o documento.”

Neste contexto, o Congresso, para fortalecer o Estado Democrático de Direito, poderia, mais adiante, vir a discutir a revisão do artigo 142 da Constituição federal, para eliminar a referência à possibilidade de convocação das Forças Armadas por qualquer um dos chefes de Poder para a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), atribuição de outros órgãos de segurança, conforme previsto na Constituição e na legislação em vigor.

Chegou o momento de colocar a questão das relações entre civis e militares no centro das preocupações do Legislativo nacional e definir uma agenda que atenda aos interesses de todos e desmonte armadilhas ideológicas que dificultem a pacificação e possam estimular a radicalização política.

*Diplomata, é presidente do Centro de Estudos de Defesa e Segurança Nacional

2 comentários:

Anônimo disse...

Tudo bom, tudo bem.
Mas tem que enquadrar as altas autoridades militares (ainda que anâs) envolvidas nos atos destruidores de 8/1 e colocá-las onde se deve: em cana!

Anônimo disse...

Enquadrar militares promotores, envolvidos e omissos que não agiram se devessem ter agido, sim! É a posição do colunista.