Correio Braziliense
Em 13 de março de 1964, o presidente João
Goulart fez manifestação popular de apoio às Reformas de Base que o país
necessitava há décadas, ou séculos, para desamarrar seus recursos e avançar no
progresso. Para evitar as reformas, que necessariamente tocariam em seus
privilégios, a reacionária elite brasileira preferiu destituir o presidente.
Quase 60 anos depois, o Brasil ainda espera aquelas e outras reformas nascidas
nas cinzas do fracasso do desenvolvimentismo e nos desafios da realidade do
século 21.
Em 1964, nossa principal reforma era a agrária. Nosso maior recurso potencial era a terra sem trabalhadores e os trabalhadores sem terra. O Brasil seria outro se tivesse feito a reforma agrária naquele tempo, permitindo a liberação e o uso desses recursos. Se ela tivesse sido feita, nossas cidades não seriam as monstrópoles de hoje, porque a migração em massa dos anos 1970 e 1980 não teria ocorrido. O Brasil não teria a fome que decorre da falta de renda, mas também da produção menor de alimentos para o mercado interno. Embora ainda necessária, essa reforma já não tem a mesma importância. O país caminhou para uma urbanização deformada em cidades inchadas; e a agricultura, para a modernização do agronegócio exportador.
A principal reforma atual deve ser para
liberar o recurso fundamental da economia do século 21: o capital conhecimento.
Nosso potencial está nos cérebros de nosso povo. Sessenta anos depois de Jango,
é preciso uma reforma que assegure escola de qualidade para todas as crianças
brasileiras, de maneira a desenvolver o potencial com o qual cada uma delas
nasce. "Nenhum cérebro deixado para trás" substitui o slogan de
"nenhum latifúndio deixado improdutivo".
No seu tempo, Jango incluiu a reforma
alfabetizadora sob o comando de Paulo Freire. O golpe e a interrupção daquelas
reformas levaram o Brasil a ter hoje mais analfabetos adultos do que naquele
tempo. É preciso retomar e realizar um programa pela erradicação do
analfabetismo, que segue como um fóssil do passado. Mas o mundo atual exige a
alfabetização para a contemporaneidade: todo brasileiro terminando o ensino
médio com a máxima e igual qualidade. A grande reforma deste momento é a
federalização da educação de base, para liberar o potencial nos cérebros de
nossas crianças, independente da sua renda e do seu endereço.
Naquele tempo, o Brasil precisava usar o
Estado para fazer as reformas, hoje precisa-se reformar o próprio Estado, que,
submetido ao corporativismo, tem sido instrumento de criação de privilégios e
mordomias, ferramenta para a concentração estrutural de renda, embora
disfarçada pela distribuição conjuntural de minúsculos auxílios e bolsas. A
reforma precisa submeter o Estado do patrimonialismo, do imediatismo, da
ineficiência, da ostentação, da corrupção, fazendo-o eficiente, comprometido
com os interesses nacionais e das camadas pobres, com estratégias estruturais
de longo prazo, vacinado contra a corrupção no comportamento dos políticos e a corrupção
nas prioridades das políticas.
Nos anos 1960, Jango tentou reformas que
servissem de base para o desenvolvimento econômico nos moldes do crescimento
mais rápido e amplo da indústria mecânica, para aumentar a renda e o consumo da
população. No século 21, é preciso reformar os próprios propósitos do
desenvolvimento: entender a necessidade de regras que assegurem o progresso com
sustentabilidade ecológica, fiscal, social, democrática. No lugar do
protecionismo à indústria ineficiente, será preciso entender que daqui para a
frente o crescimento deve ser integrado ao mundo, incentivar o aumento da
produtividade e da competitividade.
A reforma deve levar em conta o imenso
potencial da biodiversidade brasileira, buscando sermos o líder mundial da
bioeconomia sustentável e de alta tecnologia. Para tanto, a reforma da educação
com máxima qualidade para todos deve ir além da educação de base e implantar no
Brasil um moderno sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação, fazendo
para tanto a necessária reforma de nossas universidades. Ausente no tempo de
Goulart, agora é prioritário fazer a reforma política, que rouba bilhões de
reais do orçamento público e corrompe os partidos transformando-os em viciados
cassinos eleitorais.
A chegada do governo Lula foi uma vitória,
ao barrar a reeleição do atraso, mas o país precisa ir além e, com ambição e
lucidez, definir uma estratégia para o futuro, iniciando as reformas que são
tão necessárias agora quanto aquelas que Jango propunha.
*Cristovam Buarque - Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
2 comentários:
O professor Cristovam sempre nos mostra uma visão de estadista! Excelente texto! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!
Professor Cristovam é a voz que clama pela Educação, o único caminho para de fato haver igualdade de oportunidades e fim da miséria. Vamos parar de “bater no BC” e ouvir o digníssimo Professor?
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