O Estado de S. Paulo.
Mal podemos imaginar o grau de beligerância
num mundo em que autocratas dos mais variados coturnos conseguissem acesso
irrestrito às alavancas e às salas de comando
Desde 1945 imagens de “crianças mudas
telepáticas” e de “meninas cegas inexatas”, entre outras, passaram a indicar,
de modo irrevogável, a possibilidade de autodestruição da humanidade sob a nova
condição atômica. E a tal ponto que a ameaça absoluta representada pelo
cogumelo obsceno – a “rosa com cirrose”, na intuição de Vinícius de Moraes –
seria percebida por políticos responsáveis de todas as correntes. A partir daí
o gênio não voltaria mais à garrafa de origem e vez por outra nos assombraria.
Em alguns momentos, como na crise cubana dos mísseis, escapamos por um triz.
Talvez surpreenda hoje a afirmação de que
um líder comunista, forjado nos anos de ferro e fogo, tenha apreendido tal
ameaça em toda a sua extensão e complexidade. Palmiro Togliatti, respeitado
dirigente do antigo Partido Comunista Italiano (PCI), nos anos 1950 e 1960 do
século 20 interpelaria em variados momentos a cultura católica “adversária”,
buscando um terreno comum a partir do qual a “luta pela paz” saísse da esfera
instrumental – inclusive da parte dos comunistas – e empolgasse multidões mundo
afora.
Para Togliatti, a guerra já não era a continuação da política por outros meios, mas, antes, a abolição desta mesma política e, como consequência, “o possível suicídio de todos”. A Igreja de Constantino começava a definhar com os bons ares do Concílio Vaticano II e o tempo dos anátemas devia ficar progressivamente para trás. Seria, então, a hora do “diálogo” entre cristãos e marxistas, estes últimos, ainda por cima, chamados a deixar de lado aspectos ultrapassados da sua visão das religiões, herdados do iluminismo do século 18 e do materialismo do século 19.
Movimentos desta grandeza não dão frutos
imediatos nem nascem numa só tradição. Germinam aos poucos, confluem com outras
ideias e realidades, como a afirmação dos direitos humanos, a proposição da não
violência e o surgimento das Nações Unidas no rastro destrutivo da 2.ª Guerra
Mundial. Não há mais o comunismo histórico, ainda que algumas das suas versões
altas, como a togliattiana, mereçam revisões e releituras. Por isso, a
advertência contra o apocalipse nuclear e a percepção de que caminhamos “como
sonâmbulos à beira do abismo” ressurgem com insistência, estimulando uma
consciência aguda dos perigos ao redor.
Jürgen Habermas, por exemplo, uma espécie
de “papa laico” da razão discursiva, tem forte influência na esfera pública
europeia e mesmo global. Um dos últimos maîtres à penser, o filósofo não
esconde afinidades eletivas com a social-democracia. Em ao menos duas
intervenções, em maio de 2022 e em fevereiro de 2023, Habermas fez o que dele
se esperava, denunciando inequivocamente a guerra de Putin e afastando-se dos
extremos – de direita e de esquerda – que sentem o mesmo e estranho fascínio
pelo autocrata. Observador das tragédias de dois séculos, que teimosamente
parecem se repetir em espiral, o filósofo toma o claro partido da Ucrânia – uma
nação tardia, ainda em formação – e simultaneamente adverte que não se derrota
uma potência atômica.
A busca de “compromissos toleráveis” é o
norte da bússola habermasiana. Tais compromissos, se conseguidos, é que
permitiriam afastar o cenário que, em Bakhmut e outros lugares infelizes,
lembra Verdun, a terrível batalha de posições do primeiro ato da prolongada
guerra civil europeia do século passado. Na consciência humana deveriam se
fixar, antes de tudo, o sofrimento das vítimas e o cancelamento da vida
civilizada que ora invadem nossas telas cotidianamente. A urgência dos
compromissos decorre da percepção deste sofrimento inaudito e inaceitável. À
Rússia de Putin não se deveria reconhecer nenhuma vantagem posterior à invasão,
voltandose assim ao status quo de pouco mais de um ano atrás.
O dilema ocidental está contido em momentos
discrepantes que certamente escapam a reivindicações justas, mas “maximalistas”:
a Ucrânia não deve perder a guerra, a qual, por seu turno, não pode deixar de
joelhos o invasor. A primeira vive o tempo heroico – e, na verdade, irrefreável
– típico dos processos de nation-building. No entanto, a autocracia russa,
capaz de manipular a própria opinião pública e dela obter um consenso mais ou
menos passivo, não será derrotada por forças de fora. Caberá aos cidadãos do
grande país desafiar o ditador e seu regime, bem como desinflar o que Vladimir
Lenin, a seu tempo e com grande conhecimento de causa, rotineiramente chamava
de “chauvinismo grão-russo”.
Há ainda, em meio à tempestade, um sinal
potente para todos os democratas. Putin, aparentemente tão poderoso, é uma
ponta de iceberg, um dos rostos do movimento que envolve não só ditaduras
afins, como também forças de extrema direita e esquerdistas desmiolados que
solapam internamente nossas democracias. Mal podemos imaginar o grau de
beligerância num mundo em que autocratas dos mais variados coturnos
conseguissem acesso irrestrito às alavancas e às salas de comando. Teríamos
certamente de renunciar à delicada razão lírica de Vinícius e nos abandonar,
sem esperança, à prosa soturna de novos Orwells.
*Tradutor e ensaísta, é um dos
organizadores das obras de Gramsci no Brasil
2 comentários:
Tenho tentado. Mas nesse punhado de linhas do penúltimo parágrafo, o enfoque preciso de Luiz Sérgio me faz, pela primeira vez, entender a realidade sombria – aterrorizante, até – que passou a envolver a Ucrânia (e partes do mundo). Um ano atrás, acreditávamos que haveria apenas uma invasão (sim, criminosa, como é sabido) e que ela duraria umas poucas semanas. Mas faltou aquele ingrediente, a efemeridade, elemento tão significativo no mundo digital com que já nos acostumamos. De fato, empurrando o contexto do presente numa tentativa de jogá-lo no passado, há sempre "o ditador e seu regime", a ser desafiado, como muito bem coloca o Luiz Sérgio. Gostaria de estar vivo quando o mundo, sacudindo a poeira das guerras (e seus efeitos globais), deixasse de ser tema para a "prosa soturna de novos Orwells".
Um belo artigo e um belo comentário.
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