O Estado de S. Paulo
A República precisa de uma data para opor aos herdeiros das ditaduras o valor da democracia
Fingindo-se de morto, Stalin olha fixo os
soldados que retiram seu caixão do Kremlin. A cena abre o poema Os herdeiros de
Stalin, de Ievguêni Ievtuchenko. O texto apareceu no Pravda, em 1962, e se
tornou símbolo do Degelo, a política de desestalinização de Nikita Kruchev. No
Brasil, Haroldo de Campos traduziu assim seus versos finais: “Enquanto neste
mundo houver herdeiros de Stalin, para mim,/no mausoléu,/Stalin ainda resiste”.
O poeta tinha razão. Não basta retirar o caixão do mausoléu. Stalin tem herdeiros. A Rússia de Putin retomou o culto ao vozhd, ao líder, e levou seus sonhos imperiais à Ucrânia. Uma nação é também feita de símbolos e heranças. E memória.
Foi para apaziguar os ânimos e desarmar os
espíritos que o almirante Mauro César Rodrigues, o brigadeiro Mauro Gandra e o
general Zenildo Lucena decidiram, em 1995, acabar com a nota conjunta sobre o
31 de Março de 1964. Desfeita a URSS, o anticomunista como forma de coesão e
identidade se enfraquecera. Além disso, a data dividia o Brasil. E as Forças
Armadas devem ser fator de união e não de conflito. Não se comemora vitória
sobre brasileiros. Caxias ensinara isso ao vencer os farrapos.
Jair Bolsonaro escolheu a dedo a data de
sua volta ao País. Ele e seus generais retiraram do caixão a comemoração
oficial sobre o golpe porque a Nova República se esqueceu dos herdeiros do
AI-5. Ela suprimiu a data, mas nada pôs no lugar; não procurou um feito das
armas nacionais para opor ao 31 de Março como símbolo da Constituição.
Em As Formas Elementares da Vida Religiosa,
Émile Durkheim diz que “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos
deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e
atitudes rituais”. Datas, símbolos e rituais não são frivolidades. A dimensão
simbólica penetra a vida social. Jaques Le Goff mostra que se tornar senhor da
memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos
grupos e dos indivíduos que dominam as sociedades históricas.
Na Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército, além de seus patronos, só Mascarenhas de Morais, o comandante da
Força Expedicionária Brasileira, tem ali o retrato sem ter chefiado a escola.
Isso mostra um caminho à República: retirar o 21 de fevereiro do esquecimento
que lhe dedica o mundo civil.
A data da vitória de Monte Castelo é um
símbolo de união nacional e da luta contra o nazifascismo. Eis um feito das
armas que se deve lembrar para afirmar a liberdade e a democracia como valores
fundamentais. A República não deve esquecê-lo. E não é porque os herdeiros do
AI-5 ou os de Stalin podem um dia voltar. É porque, na verdade, eles nunca
foram embora.
4 comentários:
Perfeito.
Os stalinistas da hora não acertam nem a data.
O 31 DE MARÇO, NA VERDADE, É UM TREMENDO 1º DE ABRIL, LEMBRA?
O DIa da Mentira é TODO DIA pro Jair GENOCIDA Bolsonaro!
Jair voltando...
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