sábado, 25 de março de 2023

Oscar Vilhena Vieira* - O centrão, organização política extrativista

Folha de S. Paulo

Velhas ferramentas em prol da governabilidade vêm perdendo eficácia

centrão é uma organização política voltada a controlar parcelas cada vez maiores do orçamento público, com o objetivo de irrigar os redutos eleitorais de seus associados para que tenham maiores chances de se manter no poder. Embora essa organização extrativista exista desde o processo constituinte, ganhou força com a derrocada do PSDB e do antigo PFL e a crescente fragmentação partidária, impulsionada pelo fundo partidário e por decisões desastradas do Supremo Tribunal Federal (cláusula de desempenho e fidelidade partidária).

Os custos impostos pelo presidencialismo de coalizão aos presidentes Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Lula jamais foram pequenos. Mas, com a multiplicação de partidos e o entrincheiramento do centrão no comando da Câmara dos Deputados, houve uma transformação da natureza do nosso arranjo político. As velhas ferramentas conferidas ao presidente da República para assegurar a governabilidade, como medidas provisórias, pedidos de urgência, contingenciamento do Orçamento e mesmo distribuição de cargos, vêm perdendo sua eficácia.

Em troca de um escudo contra o impeachment (pelos múltiplos e graves crimes de responsabilidade cometidos), Bolsonaro cedeu significativos nacos de poder ao centrão. Triplicaram-se os valores orçamentários diretamente controlados por parlamentares; também houve uma queda de mais de 50% nos projetos de iniciativa do Executivo aprovados pelo Congresso.

Isso não seria ruim se estivéssemos num regime parlamentarista ou semi-presidencialista, em que os parlamentares podem ser responsabilizados pelas políticas que adotam ou pelo modo como gastam recursos públicos, por meio da derrubada do governo que apoiam ou mesmo com a dissolução do Parlamento e convocação de novas eleições. Em nosso sistema, no entanto, o poder exercido por parlamentares não vem acompanhado de grande responsabilidade política, incentivando o oportunismo e o extrativismo.

É nesse contexto que devemos compreender o braço de ferro em torno do rito para aprovação das medidas provisórias. De acordo com o parágrafo 9º do artigo 62 da Constituição Federal, "caberá à comissão mista de deputados e senadores" emitir um juízo prévio sobre os seus "pressupostos constitucionais", para as casas, alternadamente, apreciarem o mérito da medida.

Esse rito foi alterado durante a pandemia. A análise das MPs passou a ser feita primeiramente pela Câmara, reduzindo o tempo de tramitação no Senado. Finda a pandemia, o presidente da Câmara não quer abdicar dessa ferramenta de poder, que amplia sua capacidade de extrair benefícios do Executivo.

Os líderes do centrão sequer disfarçam seus objetivos. Sem a liberação de emendas, o impasse não será resolvido, ameaçam: "Não vai andar um milímetro" e o "prejuízo vai ser do governo atual". A sala de máquinas apenas funcionará se bem azeitada pelos recursos orçamentários voltados a irrigar redutos eleitorais. A falta de cerimonia é constrangedora, mas essa é a gramática de poder que se normalizou em Brasília.

Desarmar paulatinamente essa engrenagem de extrativismo institucional, do qual o governo parece estar se tornando refém, é a missão mais desafiadora desse mandato presidencial. Dela dependem a melhoria do bem-estar da população assim como o próprio futuro de nossa democracia. Não há tempo e energia a perder com disputas irracionais, dentro ou fora do governo. É bom o governo acordar, pois populismo autoritário pode ter perdido a eleição, mas não está nada morto.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

 

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