Folha de S. Paulo
Velhas ferramentas em prol da
governabilidade vêm perdendo eficácia
O centrão é
uma organização política voltada a controlar parcelas cada vez maiores do
orçamento público, com o objetivo de irrigar os redutos eleitorais de seus
associados para que tenham maiores chances de se manter no poder. Embora essa
organização extrativista exista desde o processo constituinte, ganhou força com
a derrocada do PSDB e do antigo PFL e a crescente fragmentação partidária,
impulsionada pelo fundo partidário e por decisões desastradas do Supremo Tribunal
Federal (cláusula de desempenho e fidelidade partidária).
Os custos impostos pelo presidencialismo de coalizão aos presidentes Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Lula jamais foram pequenos. Mas, com a multiplicação de partidos e o entrincheiramento do centrão no comando da Câmara dos Deputados, houve uma transformação da natureza do nosso arranjo político. As velhas ferramentas conferidas ao presidente da República para assegurar a governabilidade, como medidas provisórias, pedidos de urgência, contingenciamento do Orçamento e mesmo distribuição de cargos, vêm perdendo sua eficácia.
Em troca de um escudo contra o impeachment
(pelos múltiplos e graves crimes de responsabilidade cometidos), Bolsonaro cedeu
significativos nacos de poder ao centrão.
Triplicaram-se os valores orçamentários diretamente controlados por
parlamentares; também houve uma queda de mais de 50% nos projetos de iniciativa
do Executivo aprovados pelo Congresso.
Isso não seria ruim se estivéssemos num
regime parlamentarista ou semi-presidencialista, em que os parlamentares podem
ser responsabilizados pelas políticas que adotam ou pelo modo como gastam
recursos públicos, por meio da derrubada do governo que apoiam ou mesmo com a
dissolução do Parlamento e convocação de novas eleições. Em nosso sistema, no
entanto, o poder exercido por parlamentares não vem acompanhado de grande
responsabilidade política, incentivando o oportunismo e o extrativismo.
É nesse contexto que devemos compreender o
braço de ferro em torno do rito para aprovação das medidas
provisórias. De acordo com o parágrafo 9º do artigo 62 da Constituição
Federal, "caberá à comissão mista de deputados e senadores" emitir um
juízo prévio sobre os seus "pressupostos constitucionais", para as
casas, alternadamente, apreciarem o mérito da medida.
Esse rito foi alterado durante a pandemia.
A análise das MPs passou a ser feita primeiramente pela Câmara, reduzindo o
tempo de tramitação no Senado. Finda a pandemia, o presidente da Câmara não
quer abdicar dessa ferramenta de poder, que amplia sua capacidade de extrair
benefícios do Executivo.
Os líderes do centrão sequer disfarçam seus
objetivos. Sem a liberação de emendas, o impasse não será resolvido, ameaçam:
"Não vai andar um milímetro" e o "prejuízo vai ser do governo
atual". A sala de máquinas apenas funcionará se bem azeitada pelos
recursos orçamentários voltados a irrigar redutos eleitorais. A falta de
cerimonia é constrangedora, mas essa é a gramática de poder que se normalizou
em Brasília.
Desarmar paulatinamente essa engrenagem de
extrativismo institucional, do qual o governo parece estar se tornando refém, é
a missão mais desafiadora desse mandato presidencial. Dela dependem a melhoria
do bem-estar da população assim como o próprio futuro de nossa democracia. Não
há tempo e energia a perder com disputas irracionais, dentro ou fora do
governo. É bom o governo acordar, pois populismo autoritário pode ter perdido a
eleição, mas não está nada morto.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em
direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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