O Estado de S. Paulo
O que o Brasil quer da relação com a China na defesa dos interesses nacionais concretos, e não subordinados à ideologia ou à geopolítica? É hora de definir esses interesses
A viagem do presidente Lula à China foi
adiada por motivo de saúde e ainda não tem data para ser concretizada. A China
que vai receber o presidente brasileiro é muito diferente daquela que existia
nos últimos anos. A partir da confirmação de um terceiro mandato do presidente
Xi Jinping, a retórica cautelosa das lideranças de Beijing se alterou
profundamente. Xi Jinping defendeu que a China deve “participar ativamente da
reforma e construção do sistema de governança global e promover iniciativas de
segurança globais” para a paz e o desenvolvimento mundiais. Essa nova atitude
foi responsável pela bem-sucedida mediação entre a Arábia Saudita e o Irã que
culminou num acordo para o restabelecimento das relações diplomáticas entre os
dois países. Com isso, a China tornou-se um ator mais importante que os EUA no
Oriente Médio.
Essa crescente atividade externa certamente foi ampliada na conversa com Putin e o prometido contato telefônico com Zelenski para tentar influir nos esforços para a suspensão das hostilidades na Ucrânia. Uma proposta de 12 pontos anunciada pelo Ministério do Exterior chinês, apoiada pela Rússia, foi prontamente rechaçada pelos EUA e pela Ucrânia.
Essa ofensiva diplomática da liderança
chinesa e a escalada retórica quanto à possibilidade concreta de um conflito
armado, caso não cessem as medidas de Washington contra Beijing, mostram uma
atitude mais assertiva da China e a tentativa de oferecer uma alternativa ao
modelo de relações internacionais liderado pelos EUA. O governo russo também
acenou com uma conflagração nuclear, caso a Inglaterra forneça arma com urânio
empobrecido a Ucrânia.
A agenda de Lula com Xi Jinping na área
bilateral, segundo divulgado pelo governo, poderá incluir a ampliação da
cooperação na questão ambiental e a participação da China no fundo amazônico ou
outra forma de cooperação na preservação da Floresta Amazônica. A agenda
comercial e de investimentos poderá incluir novos produtos no intercâmbio
bilateral e cooperação tecnológica em semicondutores, 6G e Inteligência
Artificial, na área de energia renovável e infraestrutura. A China poderá ser
atraída para uma parceria no desenvolvimento do projeto de reindustrialização e
poderá ser retomada a colaboração na área espacial, com novos satélites –
inclusive para o monitoramento da Amazônia – sendo lançados dentro do Programa
CBERS.
As discussões sobre o cenário internacional
certamente incluirão a questão da governança global, em especial a ampliação
dos membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a próxima reunião do
G-20 no Brasil, o futuro do Brics e a participação do Brasil no Novo Banco de
Desenvolvimento. Como será recebida a proposta de Lula de promover um grupo da
paz na Ucrânia, será atropelada pelas ações chinesas ou poderá ser vista como
complementar à proposta de Beijing?
A China, quando propôs ao Brasil no governo
FHC uma parceria estratégica, sabia muito bem o que queria na relação
bilateral, como se comprovou nos últimos anos, quando Beijing passou a importar
produtos agrícolas e minerais para sua economia. O Brasil passou a depender do
mercado chinês para suas exportações do agro e a China tornou-se nosso maior
parceiro comercial. Até aqui, essa parceria foi vantajosa, mas criou uma forte
dependência dos interesses comerciais e econômicos brasileiros com a Ásia, em
especial com a própria China. O Brasil mantém com o maior país da Ásia dois
programas de cooperação de longo prazo: o Plano Estratégico 2022-2031,
concentrado em três eixos – político, economia (investimento, comércio e
cooperação) e ciência (tecnologia e inovação); e o Plano Executivo 2022-2026,
que inclui infraestrutura, cooperação financeira, energia e mineração,
agricultura, aquicultura e pesca, educação, esportes, cultura, turismo e saúde,
cooperação na ciência, tecnologia e inovação, além da cooperação espacial.
O governo Lula tem o grande desafio de
definir os interesses estratégicos do Brasil em relação à China, o que não foi
feito por nenhum outro governo desde FHC. O que o Brasil quer da relação com a
China na defesa dos interesses nacionais concretos, e não subordinados à
ideologia ou à geopolítica? Chegou o momento de definir esses interesses.
Caso essa parceria estratégica se amplie,
numa nova era, a visita à China vai estabelecer um forte contraste com a visita
a Washington. Ao final do encontro com Biden, poucos foram os resultados
concretos, além da ênfase na defesa da democracia e das instituições
democráticas e menções genéricas à prioridade e cooperação no meio ambiente e
mudança de clima, ao contrário do que se espera na visita a Xi Jinping.
Embora não claramente verbalizada, é
crescente a preocupação dos EUA com a presença da China na América do Sul e com
a importância do relacionamento do Brasil com Beijing, como evidenciado em
recente reunião do Senado norte-americano, que chegou a ressuscitar a Doutrina
Monroe e a acenar com pressões e mesmo sanções contra o Brasil pelas posições
em relação à guerra e pela dependência da China.
Dependendo da evolução do cenário
internacional, a política de equidistância em relação ao confronto EUA-China e
à guerra na Ucrânia, coerente com o interesse nacional, será fortemente
testada.
*Ex-embaixador em Washington e Londres, é
presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
3 comentários:
Em pouco tempo a China será mais importante que os EUA em nível global. Não podemos mais atrelar nossa política externa aos interesses estadunidenses como sempre fizeram o GENOCIDA e seu INCOMPETENTE "chanceler" Ernesto Araújo, lacaios e baba-ovos do mentiroso e maluco Donald Trump.
Chora PeTebento perebento
Política externa é pragmatismo, equidistância de tensões ideológicas e construção de relações comerciais e intercâmbios diversos no conceito de ganho eu, ganha meu parceiro de negócios.
Mas há um condicionador nessa relação, um único condicionador:: os valores e cultura do seu povo.
O Brasil, embora se encontre polarizado hoje por duas lideranças populistas que não são nenhum exemplo de democracia e possuam fortes ligações com ditaduras, com autocratas e com atores e ideólogos autoritários diversos, é um país em que o povo ainda afirma valores de liberdade e democracia.
Neste momento político do mundo, mantidos ao máximo possível nosso relacionamento com todos, o Brasil deve evitar estreitar relações com governos que contrariem a vocação democrática de nosso povo
Para ilustrar o que deve ser nosso compromisso político com o mundo livre, é de todo inadimissível que o Brasil não faça a condenação dos abusos da Rússia à soberania da Ucrânia e ao direito à autodeterminação do povo ucraniano.
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