sexta-feira, 5 de maio de 2023

Armando Castelar Pinheiro* - Raiva, política e desenvolvimento

Valor Econômico

Promover a polarização, energizar a raiva de seus apoiadores, distrai a atenção dos problemas que devem ser resolvidos

Pedalando de volta da aula, lá estavam outra vez os manifestantes na orla de Copacabana, pedindo o impeachment do presidente, com cartazes de “Fora Lula”, agitando o ameno clima do domingo carioca. Antes era o “Fora Bolsonaro”, na sequência do “Fora Temer”, com cores diferentes, é verdade, e antes ainda o “Fora Dilma”, aí com as mesmas cores. Faz pelo menos 10 anos que a política nacional parece se limitar à polarização política, com as eleições de 2018 e 2022 indo pouco além disso.

Essa raiva toda tem definido as eleições, mas ela ajuda pouco a governar. Até porque, nem o vencedor, nem o perdedor, parecem querer deixar essa polarização para trás quando a eleição acaba. Cria-se assim um clima que não favorece a construção de boas políticas, e menos ainda sua aceitação pela sociedade. Como sair disso?

Para buscar uma resposta fui ler o bom livro de Martha Nussbaum, “Anger and Forgiveness: Resentment, Generosity, Justice” (Oxford Univ. Press, 2016). É um livro sobre raiva, que se divide em como lidar com essa emoção na esfera pessoal, na política e no que a autora chama do “meio campo”, que inclui nossa relação com inúmeros atores, como a burocracia, prestadores de serviços, pessoas desconhecidas, etc.

Para minha surpresa, confesso, descobri que o tema da raiva é tratado na literatura há milênios. Aristóteles, Sêneca e Adam Smith, para ficar nos mais conhecidos, trataram extensivamente do tema em suas obras. Todos advogando, com ênfases variadas, a importância de nos livrarmos dela. Não é difícil ver porque, especialmente na política.

Em seu livro “Retórica”, do século IV a.C., Aristóteles define raiva como “um desejo acompanhado de dor por uma retribuição imaginada por conta de um menosprezo imaginado infligido por pessoas que não têm razão legítima para menosprezar a nós ou a alguém de nosso círculo de relações”.

Nussbaum explora diferentes dimensões dessa definição, como o uso dobrado de “imaginado”, para enfatizar que por vezes a raiva resulta de uma ofensa que não existiu ou que não foi intencional, e como tão frequentemente a raiva resulta de uma percepção de status relativo, de algo que alguém faz nos fazer sentir menor, desprestigiado, algo que no fundo está na nossa cabeça. A obra de Sêneca, em especial, foca bastante nisso, informa Nussbaum, até por a manifestação de raiva ser mal vista na Grécia e na Roma antigas, coisa infantil, bem diferente do que ocorre por vezes na atualidade.

Mas o ponto central é como a raiva acaba por nos prender ao passado, ao ficarmos matutando e planejando a “retribuição imaginada” de que fala Aristóteles. A própria ideia de perdão, tão presente na cultura judaico-cristã, é no fundo um caminho para também nos prender ao passado, argumenta Nussbaum. O pecador precisa antes reconhecer o erro, se humilhar, pedir o perdão, um longo ciclo que foca na ofensa, não no futuro.

Uma alternativa bem melhor, especialmente na política, é ser generoso e cooperativo com o outro, em vez de ficar focado na vingança. Nussbaum explora essa ideia olhando a experiência de três grandes líderes políticos que não apenas fizeram isso, mas também deixaram registrada a lógica para tal: Mahatma Gandhi, Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela. Os três alcançaram enormes avanços na situação política e social de seus países ao abrir mão do foco na violência, na retribuição pelo mal feito à sua gente, no caso certamente não imaginado, em favor de estratégias focadas no para a frente.

A importância disso é sintetizada em duas visões expostas por Mandela e assim resumidas por Nussbaum. Primeiro, “atitudes não retributivas são particularmente cruciais para a pessoa que é fiduciária de uma nação. Um líder responsável tem que ser pragmático, e a raiva é incompatível com o pragmatismo voltado para o futuro”. Segundo, “a abordagem raivosa e ressentida simplesmente não é apropriada para um líder, porque o papel de um líder é fazer as coisas acontecerem, e a abordagem generosa e cooperativa é a que funciona” para isso.

Ou seja, deduz-se do que diz Mandela, focar em promover a polarização, em energizar a raiva de seus apoiadores, não só distrai a atenção dos problemas que precisam ser resolvidos e das coisas que precisam ser feitas, como dificulta a construção de apoio político para que as soluções encontradas possam ser implementadas. Em suma, insistir na polarização raivosa não vai fazer o Brasil se desenvolver.

Naturalmente, e a própria Martha Nussbaum registra isso, a “construção de uma nação requer muito mais do que só não ter raiva. Requer um bom pensamento econômico, um sistema educacional eficaz, serviços públicos de saúde eficientes e muito mais”. Mas ficar focando no passado, em vingança e em desfazer as políticas criadas pelos opositores não vai levar a isso: a raiva demanda respostas dramáticas e rápidas, enquanto o desenvolvimento requer políticas bem pensadas e de longo prazo.

Precisamos refocar a política no futuro, em superar nossos muitos desafios. Construir soluções e convencer a sociedade de seu acerto, convencer ambos os lados do espectro político, com generosidade, cooperação e pragmatismo. E precisamos começar logo, não ficar esperando a próxima eleição, ou o surgimento de um Salvador da Pátria, o que muito dificilmente ocorrerá.

*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre

Nenhum comentário: