sexta-feira, 5 de maio de 2023

José de Souza Martins* - A comissão e a questão da terra

Eu & Fim de Semana /Valor Econômico

O presidente da Câmara teme que a criação da CPI e sua colocação nas mãos do deputado Salles dela faça um circo

O presidente da Câmara dos Deputados acolheu um requerimento de criação da CPI do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Atende a uma demanda dos ruralistas bolsonaristas. Reivindica a relatoria da comissão o deputado Ricardo Salles, que foi ministro do governo anterior. Notabilizou-se na reunião governamental de 22 de abril de 2020, quando recomendou ao então presidente da República que o governo aproveitasse que a imprensa estava distraída com a pandemia de covid e “deixasse a boiada passar” na questão das normas relativas ao meio ambiente.

O MST alerta para o fato de que a criação da CPI tem por objetivo criminalizá-lo, organização popular que tem uma história de luta pela democratização do acesso à terra. E com isso dar um encaminhamento social à complicada, desfigurada e satanizada questão agrária. Entra no inquérito já condenado e com ele condenado o novo governo.

O presidente da Câmara teme que a CPI nas mãos do deputado Salles se torne um circo. O circo, porém, não terá como não arrastar ao picadeiro os fundamentos irregulares do direito brasileiro de propriedade da terra, base das injustiças que motivam o MST.

O MST, surgido em 1984, tem atuado no sentido de assegurar a reforma agrária socialmente necessária, reconhecida em lei no início do regime militar de 1964. Sociologicamente, é ele um movimento social, cujo objetivo é o de formular os termos e a viabilidade da grande reforma social de que o país carece desde as vésperas da Independência.

A baderna de grileiros e grandes invasores de terras indígenas, de posseiros e devolutas tem criado impasses e tensões. Em 2000, o governo cancelou o cadastro de 1.899 propriedades, correspondentes a 62,7 milhões de hectares de terras cujos proprietários não apresentaram os documentos relativos ao direito pretendido. Em 2006, um estudo oficial estimava que 100 milhões de hectares estavam sob suspeita de grilagem, reivindicados com base em documentos falsificados.

Satanizar o MST não resolve a questão que o motiva em favor de uma alternativa social para dela sairmos, a efetiva reforma agrária. No dilema entre terra de negócio e terra de trabalho, é esta a de referência do movimento social.

Durante todo o período colonial, o acesso à terra e seu uso foi regulado pelo regime de sesmarias, decretado em 1375 e transplantado para o Brasil na conquista. Nesse regime, o rei tinha o domínio sobre as terras do país. Ao particular a terra era pelo governo cedida, sujeita, porém, à posse útil. Se não fosse observada, a terra caía em comisso, devoluta. Voltava a ser distribuída.

A Lei de Terras, de 1850, que transferiu aos particulares o domínio da terra que era do Estado, criou nosso atual regime de propriedade, o da propriedade absoluta, que juntou uso e domínio. O decorrente Registro Paroquial de 1854 e 1856 tornou-se, então, o alicerce da cadeia dominial que fundamenta o direito de propriedade da terra no Brasil.

A partir da Revolução de Outubro de 1930, com o Código de Águas, de 1934, o direito ao solo foi separado do direito ao subsolo, uma medida decisiva para o desenvolvimento do país. Com o tempo, os territórios indígenas, sob tutela do Estado, foram reconhecidos como reservas de uso tribal, segundo valores e princípios da cultura indígena, insuscetíveis de apropriação privada.

A condição de que a propriedade da terra deve cumprir uma função social, já na Constituição de 1946 abrandou o direito de propriedade e culminou com a reforma constitucional de 1964, do regime militar, o Estatuto da Terra e a institucionalização da reforma agrária. Mais adiante, os territórios de comunidades quilombolas foram amparados por concepções comunitárias de direito sobre a terra de seu modo de vida.

No último ano do regime militar, sendo ministro o general Danilo Venturini, passos foram dados no sentido de reformular as bases de regularização do direito à terra. Devido à alta incidência de irregularidades e de documentos falsos de propriedade, feitos pela indústria de grilagem de terras, a posse útil e o trabalho sobre a terra passariam a ser a referência da Justiça fundiária. A inovação foi boicotada.

Estamos ainda no curso da revisão das consequências dos erros e violações da Lei de Terras, de 1850. O MST, quando reivindica e ocupa terras, aparentemente o faz em nome do que supõe ser a legitimidade do retorno delas à sua função social de terras de trabalho. Retorna a valores positivos do regime sesmarial.

A CPI poderá indevidamente julgar o MST, que não é sua função. Mas não poderá julgar, porque será inútil, a consciência social e as carências sociais que por meio dele se expressam. É aí que o tosquiador poderá sair tosquiado.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana” (Editora Unesp, 2022).

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